sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sedrá para o Shabat de 09/11/13 (D’varim 5)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

O perek (capítulo) a ser estudado neste shabat, trás consigo um dos aspectos mais importantes vida israelita, pois nele está contido aquilo que se entende como a profissão de Fé do povo hebreu, isto é, a recitação do Shema.
A importância deste capítulo é ao grande que alguns chegam a dizer que a compreensão deste detalhe implica na compreensão de todo o livro! Mas ao redor deste importante aspecto da vida israelita, existem algumas discussões e controvérsias históricas que podem, indiretamente, afetar o principal sentido de suas palavras, a fidelidade à Torah do Eterno.

Ouvir é obedecer.

E chamou Moisés a todo o Israel, e disse-lhes: Ouve, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo aos ouvidos; e aprendê-los-eis, e guardá-los-eis, para os cumprir.
(D’varim/Deuteronômio 5.1)

Quando Moshe convoca o povo a ouvir os estatutos e juízos, não era simplesmente uma ordem para se prestar atenção no som, mas para que se desse ouvido, no sentido de se obedecer as palavras que estavam sendo pronunciadas. Ou seja, o povo estava sendo conclamado à fidelidade... Com isso em mente, podemos afirmar que não existe fidelidade ao Eterno desconectada da obediência à Seus estatutos e juízos.
No primeiro século, este conceito foi muito bem definido por Sha’ul, em uma de suas cartas, mais especificamente aos Talmidim (discípulos) que se reuniam em Roma:

De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Elohim.
(Ruhomayah/Romanos 10.17)

Este texto demonstra que o nascedouro da Fé (Fidelidade) está no “ouvir”, no “dar ouvidos” que nada mais é como foi dito anteriormente, do que obedecer, pois a palavra aramaica relativa à hebraica “shema” (ouvir), é “sheme” que também pode ser traduzida como obedecer... De modo que o texto acima poderia ser traduzido da seguinte maneira:

“Portanto, a fé vem do obedecer ao que se ouve, isto é, obedecer ao que se ouve da palavra de Elohim.”

A nível de esclarecimento, devemos ressaltar que a “Palavra de Elohim” que o texto propõe é a Torah, pois ela é o fundamento da doutrina dos profetas e emissários do primeiro século.

Como e quando?

Como dissemos na introdução deste comentário, existiram algumas controvérsias em relação a como e quando o shema deveria ser recitado.
Tais discussões foram documentadas no Talmud nos tratados Masechet Berachot 10B, sobre a exigência da Torah de se recitar o Shema: "Be'shochbecha U've'kumecha" ("quando você deitar e quando você se levanta"), foi registrado um debate entre a Beit Hilel (a escola do estudioso Hilel) e a Beit Shamai (a escola do estudioso Shamai) sobre esta questão. A Beit Hilel entendia este versículo como uma referência para o momento adequado para esta recitação: é preciso ler o Shema, à noite, quando as pessoas normalmente se deitam, e de manhã, quando as pessoas geralmente se levantam de suas camas. A Beit Shamai, por outro lado, interpretou esta frase como forma de se estabelecer a posição desejada durante a recitação do Shema: à noite, deve-se deitar enquanto se recita o Shema, e na parte da manhã, a pessoa deve recitar o Shema em pé.  De acordo com a Beit Hilel, a Torá não impõe requisitos relativos à posição correta enquanto recitava Shema, enquanto a Beit Shamai requer que estejamos de pé para recitar o Shema de dia e reclinados para recitar o Shemá noturno.

A nossa opinião é de que fomentar a discussão sobre como e quando recitar, pode nos afastar do real propósito que é cumprir as palavras que são pronunciadas e, consequentemente, ouvidas. Ou seja, não basta recitar estas palavras ao amanhecer e  ao anoitecer, devemos nos esforçar para cumpri-las durante todo o dia!

Para conhecimento do prezado leitor, informamos que no primeiro século d.C., duas escolas rabínicas se desenvolveram, (a escola de Hilel e a escola de Shamai). Cada uma destas escolas representava uma interpretação diferente da lei mosaica. A escola de Hilel era liberal, enquanto a escola de Shamai era conservadora. Essas escolas demonstravam as diferenças de opinião que giravam em torno de muitas questões. Neusner menciona que quando Hilel dizia sujo, Shamai dizia limpo, e assim por diante, tamanha era a diferença entre as duas escolas. (NEUSNER, Jacob. The pharisees: rabbinic perspectives. Hoboken, NJ: Ktav, 1973. p. 59.)

Outra controvérsia!

Há algum tempo atrás, chegamos ao conhecimento de outra polêmica envolvendo o Shema. Agora a coisa é mais complicada, pois o que se questiona não era COMO e QUANDO recitar, mas O QUE recitar! Vejamos: No Talmud há uma citação que indica que os P’rushim (fariseus) recitavam um texto diferente daquele que era recitado por outros grupos:

"Seria apropriado ler os Asseret HaDibrot [Dez Ditos/“Mandamentos”] diariamente; e por que não fazemos? Por causa do zelo dos Minim*, para que não digam: Somente esse foram dados a Moshe no Sinai”. (Yerushalmi T. Berachot 3c)

E ainda:

"Eles [ie. os sacerdotes] recitavam os Asseret HaDibrot [Dez Ditos/Mandamentos], o Shemá, as seções 'e sucederá que se diligentemente ouvirdes' e 'E YHWH disse,' 'Verdadeiro e firme,' o Avodá e bênção sacerdotal.' Rab. Judá disse em nome de Samuel: Fora do Templo, também o povo desejava fazer o mesmo, mas foram impedidos em razão das insinuações dos Minim*. Semelhantemente, foi ensinado: R. Natan diz: Eles buscaram fazer o mesmo fora do Templo, mas isso foi há muito abolido em razão das insinuações dos Minim. Rabá Bar Hanah teve uma idéia de instituir isto em Sura, mas R. Hisda lhe disse: Isto foi há muito abolido em razão das insinuações dos Minim. Amemar teve a idéia de instituí-lo em Nahardea, mas R. Ashi lhe disse: Isto foi há muito abolido em razão das insinuações dos Minim*”. (Bavli T. Berachot 12a)

Obs.:
“Minim” é o termo utilizado pelos P’rushim para se referirem aos hereges, geralmente aplicado aos seguidores do Rabi Yeshua HaNetsari.

Diante do exposto, fica claro que por causa de divergências interpretativas, os P’rushim decidiram, por sua própria conta, alterar o texto a ser recitado, Vejamos:

Keriat Shema Tradicional:

Ouve, Israel, Adonai é nosso D’us, Adonai é Um.
Amarás a Adonai, teu D’us, com todo teu coração, Estas palavras que Eu te ordeno hoje ficarão sobre teu coração. Inculca-las-ás diligentemente em teus filhos e falarás a respeito delas, estando em tua casa e andando por teu caminho, e ao te deitares e ao te levantares. Ata-las-ás como sinal sobre tua mão e serão por filactérios entre teus olhos. Escreve-las-ás nos umbrais de tua casa e em teus portões.

Acontecerá se obedecerdes diligentemente Meus preceitos, que Eu vos ordeno neste dia, de amar a Adonai, vosso D’us, e servi-Lo com todo vosso coração e com toda vossa alma; então darei a chuva para vossa terra a seu tempo, a chuva precoce e a chuva tardia; colherás teu grão, teu mosto e teu azeite. Darei erva em teu campo para teu gado, e comerás e te saciarás.

Guardai-vos para que vosso coração não seja seduzido e desvieis e sirvais outros deuses e vos prostreis diante deles. Pois então se inflamará contra vós a ira de Adonai, e Ele fechará os céus e não haverá chuva, e a terra não dará seu produto. Então perecereis rapidamente da boa Terra que Adonai vos dá. Portanto, colocai estas Minhas palavras sobre vosso coração e sobre vossa alma, e atá-las-eis como sinal sobre vossa mão e serão por filactérios entre vossos olhos.
Ensiná-las-eis a vossos filhos, a falar a respeito delas, estando em tua casa e andando por teu caminho, e ao te deitares e ao te levantares. Escreve-las-ás nos umbrais de tua casa e em teus portões. A fim de que se multipliquem vossos dias e os dias de vossos filhos na Terra que jurou Adonai a vossos antepassados dar-lhes por todo o tempo em que os Céus estiverem sobre a Terra.

Disse Adonai a Moshê o seguinte: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que façam para si franjas nos cantos de suas vestimentas, por todas suas gerações. Prenderão na franja de cada borda um cordão azul-celeste. Serão para vós por tsitsit e os olhareis e recordareis todos os preceitos de Adonai, e os cumprireis; e não seguireis atrás de vosso coração e atrás de vossos olhos, por meio dos quais vos desviareis. Para que vos lembreis e cumprais todos Meus mandamentos e sejais santos para vosso D’us. Sou Adonai, vosso D’us, que vos tirou da terra do Egito para ser vosso D’us. Eu, Adonai, sou vosso D’us (Eu, Adonai, sou vosso D’us). É verdade.

Como podemos constatar o texto acima demonstra que a tradição rabínica estabeleceu o início do Shema em D’varim (Deuteronômio) 6.4 além de outros textos da Torah enquanto, pelo contexto, podemos observar que originalmente o texto recitado incluía os asseret hadibrot (Dez Ditos/dez Mandamentos), algo que, como dissemos anteriormente, o próprio Talmud confirma.
Portanto, o texto original recitado pelos israelitas era o seguinte:

Keriat Shema Original:

Ouve, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprirdes;
Eu sou YHWH teu Elohim que te tirei do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim;

Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra; não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu, YHWH teu Elohim, sou Elohim zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem, e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos;

Não tomarás o Nome de YHWH teu Elohim em vão, porque YHWH não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão;

Guarda o dia de Shabat, para o santificar, como te ordenou YHWH teu Elohim. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o Shabat de YHWH teu Elohim; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro das tuas portas para dentro, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu; porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que YHWH teu Elohim te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que YHWH teu Elohim te ordenou que guardasses o dia de Shabat;

Honra a teu pai e a tua mãe, como YHWH teu Elohim te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para que    te vá bem na terra que YHWH teu Elohim te dá;

Não assassinarás;

Não adulterarás;

Não furtarás;

Não dirás falsidade contra o teu próximo.

Não cobiçarás a mulher do teu próximo. Não desejarás a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.

Estas palavras falou YHWH a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz, e nada acrescentou. Tendo-as escrito em duas tábuas de pedra, deu-mas a mim.

Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou YHWH teu Elohim se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que passas para a possuir; para que temas a YHWH teu Elohim, e guardes todos os seus estatutos e mandamentos que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias da tua vida; e que teus dias sejam prolongados;

Ouve, pois, ó Israel, e atenta em os cumprires, para que bem te suceda, e muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse YHWH Elohim de teus pais;
Ouve, Israel, YHWH nosso Elohim, YHWH é um;
Amarás, pois, YHWH teu Elohim, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas.

É importante dizer que no final do século 19, foi descoberto por Walter Llewellyn Nash, secretário da Sociedade de Arqueologia Bíblica, um antigo papiro em hebraico adquirido no Egito Datado do século 2 AC, o manuscrito (denominado de papiro Nash), é um dos textos litúrgicos hebraicos mais antigos de que se tem notícia. O manuscrito preserva justamente a liturgia do Shemá em sua forma original! Sobre este papiro, o acadêmico F. C. Burkitt disse:


“... o papiro dá um texto contendo elementos tanto de Êxodo quanto de Deuteronômio, exatamente como se formaria um texto litúrgico de fato baseado no Pentateuco, porém não uma transcrição direta quer de Êxodo ou de Deuteronômio. Sabemos de ambos os Talmuds que o recitar diário do Decálogo antes do Shema' já foi costumeiro, e que a prática foi descontinuada por causa de heresias cristãs (sic). É, portanto razoável supor que este papiro contenha a adoração diária de um pio judeu egípcio que viveu antes do costume findar”. (Extraído do texto: “O Keriat Shema original: Corrigindo o erro fariseu.” por Sha’ul Bentsion)
 

Cabe ao leitor avaliar a questão e decidir quais as palavras que devem ser recitadas.

Concluindo...

Após considerarmos estas questões históricas envolvendo a proclamação do Shema, sugerimos que cada um dos asseret hadibrot (dez ditos) seja examinado com a devida atenção, após isto, considerando todas as possibilidades e implicações destas palavras, não ficando limitados às letras, mas buscando uma compreensão mais espiritual, certamente alcançaremos os mananciais que proporcionarão o tão desejado Shalom que este dia tem reservado aos que o guardam.


Shabat Shalom!!!

sábado, 2 de novembro de 2013

Sedrá para o Shabat de 02/11/13 (D’varim 4)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

Neste Shabat, poderemos observar o momento em que Moshe passa, de fato, a explicar a Torah ao povo e é a partir desta explicação que começamos a perceber o caráter prático da Torah se sobressaindo em relação ao aspecto filosófico.
Poderemos também notar que alguns pontos fundamentais nas discussões entre grupos judaicos acerca da observância da Torah, se concentram neste trecho do livro. 

Teoria e Prática.

Logo no primeiro passuk (versículo), a Torah é revelada como algo prático. Ou seja, a razão dela existir é o cumprimento de seus preceitos, pois os princípios nela contidos quando praticados gerariam não apenas a sobrevivência dos filhos de Israel, mas também a recompensa:

Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes; para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o YHWH Elohim de vossos pais vos dá.
(D’varim/Deuteronômio 4.1)

 Este processo nos parece bem simples: primeiro devemos ouvir, conhecer a Lei e depois cumpri-la. Não haverá equilíbrio se apenas uma das etapas for observada, pois não é suficiente apenas “ouvir” no sentido de se obter a informação, isto é, ter a teoria, pois sem a prática o processo é interrompido, logo, não se poderá experimentar o fruto decorrente das ações propostas pelos preceitos.
No primeiro Século d.C. Temos alguns documentos que corroboram com este pensamento, vejamos:

E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos.
Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural;
Porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era.
Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecediço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.
(Ya’akov/Tiago 1.22-25)

E também:

Porque os que ouvem a lei não são justos diante do Eterno, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.
(Ruhomayah/Romanos 2.13)

Infelizmente, existem nas mais diversas comunidades, pessoas com muito conhecimento teórico da Torah e também dos profetas além de outros escritos, mas no cotidiano não se vê na prática aquilo que dizem conhecer ou mesmo saber “desde a infância” como vemos em outro documento da mesma época dos que foram citados acima:

E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna?
E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é YHWH. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.
Disse-lhe ele: Quais? E Yeshua disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho;
Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda?
Disse-lhe Yeshua: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.
E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades.
(Matitiyahu/Mateus 19.16-22)

Os ensinamentos do Rabi Yeshua enfatizavam a prática da Torah e não apenas as eventuais conceituações teóricas sobre os mais diversos aspectos da Lei. Entretanto, devemos atentar para uma questão sempre presente no que diz respeito ao cumprimento da Torah, nos referimos à interpretação, são tantas as interpretações sobre algum aspecto da Torah, que muitos nem sabem como cumpri-lo... Abordaremos este tema a seguir.

Letra X Espírito; Severidade X Flexibilidade.

Não podemos ignorar os diversos pontos de vistas existentes acerca da Torah, a prova disso são os vários grupos judaicos existentes e suas formas de observarem os preceitos nela contidos, são tantos que nos faltará tempo e espaço neste comentário para falar sobre eles! Contudo, ainda que resumidamente, falaremos de uma rivalidade histórica dentro de um dos seguimentos judaicos mais influentes de todos os tempos, os P’rushim (Fariseus).
Muito já se falou e escreveu sobre “Beit Hilel” e “Beit Shamai” (Casa de Hilel e Casa de Shamai). Estes grupos, cujos fundadores tiveram seus nomes como referência para identificação da forma como interpretavam a Torah, são amplamente citados nos escritos talmúdicos, de modo que estão registradas mais de trezentas controvérsias sobre como cumprir a “Lei”, protagonizadas por estas duas escolas! Enquanto a Beit Hilel defendia uma postura e interpretação mais moderada, uma característica que lhe conferiu como a vertente mais ‘espiritual’ dentre as duas casas. A Beit Shamai por sua vez, era mais severa e literal com relação à observância e interpretação, assim, os proponentes desta casa defendiam a ‘Letra’. Um exemplo desta diferença pode ser comprovado logo abaixo:

Um pagão apresentou-se a shamai e lhe disse: “converter-me-ei ao judaísmo se me puderes ensinar toda Torah, a Lei inteira, enquanto possa me sustentar sobre um só pé.” Shamai o expulsou com a vara que tinha na mão. Quando se apresentou a Hilel com a mesma pretensão, Hilel o converteu, respondendo ao seu pedido da seguinte maneira: “O que não queres que te faça a ti, não faças a teu próximo. Eis toda a Lei; todo o resto – é mero comentário, vai e estuda.” (Talmud. Tratado Shabat 31 A)
Por isso, no mesmo tratado do Talmud, entende-se a expressão:

“Nossos rabinos ensinaram: Um homem deve ser sempre amável como Hilel, e não impaciente como Shamai.” (Shabat 30b).

Tais palavras estão em harmonia com a Torah, que ensina:

Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.
(Vayikrá/Levítico 19.18).

Diante disso, devemos estar atentos quanto à literalidade e espiritualidade dos textos para não incorrermos em erro interpretativo e impedirmos que vidas se acheguem ao Eterno.

Quem conta um conto...

Outra importante instrução encontra-se no passuk (versículo) 2, vejamos:

Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos de YHWH vosso Elohim, que eu vos mando.
(D’varim/Deuteronômio 4.2)

No relato da criação, podemos observar algo que demonstra o porquê devemos levar tão a sério a ordem de não se acrescentar palavras ao que foi ordenado pelo Eterno... Vejamos:

Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o YHWH Elohim tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Elohim disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Elohim: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais.
(Bereshit/Gênesis 3.1-3)

Se compararmos a resposta de Chawah (Eva) à serpente no terceiro passuk (versículo) do perek (capítulo) 3, com o que diz Bereshit (Gênesis)2.17 veremos que desde os primórdios existe na humanidade a tendência de se acrescentar palavras às instruções do Eterno, vejamos:

E ordenou YHWH Elohim ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
(Bereshit/Gênesis 2.16-17)

Podemos constatar que a instrução dada pelo Eterno dizia que não se deveria COMER da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas Chawah (Eva) acrescentou que além de comer também não se deveria TOCAR! O resultado deste relato, sendo uma alegoria ou não, todos já conhecem.
Ao acrescentar algo ao que havia sido dito pelo Eterno, Chawah demonstrava que não estava atenta as palavras de YHWH Elohim, assim, a serpente pode enganar a mulher. Infelizmente esta história continuou a se repetir ao longo da história como podemos verificar ao longo do texto sagrado:

E YHWH falou a Moisés dizendo:
Toma a vara, e ajunta a congregação, tu e Arão, teu irmão, e falai à rocha, perante os seus olhos, e dará a sua água; assim lhes tirarás água da rocha, e darás a beber à congregação e aos seus animais.
Então Moisés tomou a vara de diante de YHWH, como lhe tinha ordenado.
E Moisés e Arão reuniram a congregação diante da rocha, e Moisés disse-lhes: Ouvi agora, rebeldes, porventura tiraremos água desta rocha para vós?
Então Moisés levantou a sua mão, e feriu a rocha duas vezes com a sua vara, e saiu muita água; e bebeu a congregação e os seus animais.
E THWH disse a Moisés e a Arão: Porquanto não crestes em mim, para me santificardes diante dos filhos de Israel, por isso não introduzireis esta congregação na terra que lhes tenho dado.
(Bamidbar/Números 20.7-12)

Podemos dizer que de certa forma, Moshe “acrescentou” algo ao que havia sido dito pelo Eterno e a conseqüência disto foi a proibição que ele recebeu de entrar na Terra Prometida.
Outro aspecto interessante sobre “acréscimos” estaria descrito no perek (capítulo) seguinte a este que estamos comentando, trata-se de D’varim (Deuteronômio) 5.22 (Na Torah da Sefer e na da Maayanot, o passuk/versículo é o 19):

Estas palavras falou o Senhor a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridão, com grande voz, e nada acrescentou; e as escreveu em duas tábuas de pedra, e a mim mas deu.
(D’varim/Deuteronômio 5.22)

Como diz o próprio texto, O Eterno ולא יסף (VeLo Yasaf)“nada acrescentou” ao que foi dado no monte. Sendo assim, o que seria então a Torah Oral que alguns defendem como as palavras que foram, segundo acreditam, explicações e interpretações da Torah escrita, ditas a Moshe, denominada como “Torah she-Be’alpeh”. Tal entendimento gerou muitas discussões ao longo dos séculos e para abordar toda a celeuma nos faltaria tempo e espaço para elencar todas as derivações desta questão. Contudo, gostaríamos de citar apenas uma situação mais recente envolvendo um seguimento judaico denominado “Karaitas”.
A palavra caraíta (do hebraico קראים, karaim ou bnei mikra, "Seguidores das
Escrituras"), é a denominação do grupo que defende unicamente a autoridade das Escrituras Hebraicas como fonte de Revelação Divina. Rejeitam o judaísmo rabínico como por exemplo o Talmud e a Mishná (aceitos pelo judaísmo rabínico). Não seguem costumes judaicos rabínicos como o uso de peiot, tefilin e afins. A história dos karaitas esta amplamente registrada em livros e na internet, por isso só iremos transcrever um pequeno resumo para que o prezado leitor tenha uma breve noção deste seguimento:

Desde a época do Segundo Templo existiam grupos no judaísmo que defendiam a autoridade única e exclusiva da Torá escrita, em oposição aos que seguiam também as tradições posteriores conhecidas como a Torá oral. Entre as seitas que seguiam unicamente a Torá escrita estavam os tzadokim (saduceus) e os betusianos. Esses se opunham aos perushim (Fariseus) que defendiam ter Deus lhes revelado, junto com a Torá escrita, uma Torá oral, que era passada de geração em geração pelos estudiosos, mestres e profetas.
Essas seitas continuaram a existir mesmo depois da destruição do Templo no ano de 70 d.C., mas com a queda de Jerusalém, a autoridade central representada pelo Templo deixou de existir, fortalecendo as comunidades locais e seus centros de estudo (sinagogas), que eram majoritariamente farisaicas. Esses fariseus posteriormente dariam origem ao judaísmo rabínico, compilando suas leis e tradições em sua obra conhecida como Talmud.
O Talmud no entanto não foi aceito por parcela da comunidade judaica, que opôs forte resistência ao judaísmo rabínico. No séc. VIII d.C., Anan ben David organizou os diversos elementos antitalmúdicos e conseguiu convencer o Califado a estabelecer um segundo exilarcado para aqueles que não seguissem as práticas talmudistas. Os seguidores de Anan foram conhecidos como "ananitas" e posteriormente misturando-se a outras seitas anti-rabínicas constituíram o Caraísmo.

Contudo, devemos dizer que Anan ben David, não foi o primeiro líder a defender esta perspectiva, tendo em vista que a organização deste grupo se deu apenas no Século VIII. Já no primeiro Séc. Outro Líder se destacava com a proposta de uma superioridade das escrituras sobre as tradições do povo. Estamos nos referindo ao Rabi Yeshua HaNetzari, vejamos um exemplo:

Então chegaram ao pé de Yeshua uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:
Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem pão.
Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Elohim pela vossa tradição?
Porque Elohim ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá.
Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe,
E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Elohim.
(Matitiyahu/Mateus 15.1-6)

Os discípulos do Rabi Yeshua deram continuidade a esta proposta, como foi documentado por Jerônimo (Nascido no Século IV d.C.) num comentário sobre Yeshayahu (Isaías) 9.1-4:

 “Os nazarenos, cuja opinião coloquei acima, tentam explicar esta passagem da seguinte forma: ‘Quando o Messias veio e sua proclamação brilhou, a terra de Zebulon e Naftali primeiro de todos foram libertas dos erros dos escribas e dos p’rushim e Ele removeu de seus ombros o pesadíssimo jugo das tradições judaicas. Depois, contudo a proclamação se tornou mais dominante, o que significa que a proclamação se multiplicou através das boas novas do emissário Sha’ul (Paulo) que foi o último dos emissários. E as boas novas do Messias brilharam para as tribos mais distantes e pelo caminho de todo o mar. Finalmente todo o mundo que anteriormente andava ou se assentava nas trevas e era aprisionado pelas amarras da idolatria e da morte, viu a clara Luz das boas novas.”

De fato, este comentário confirma o que está registrado no livro de  Ma’assei (Atos) acerca desta perspectiva:

E O Eterno, que conhece os corações, lhes deu testemunho, dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós; E não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé.
Agora, pois, por que tentais ao Eterno, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar?
(Ma’assei/Atos 15.8-10)

Vale ressaltar que a discussão aqui não era a vigência da Torah, mas se a salvação estava condicionada as Obras ou na misericórdia do Eterno. Situação semelhante a que é retratada no Talmud como podemos constatar:

“Talvez Tu tenhas grande prazer em nossas boas obras? Mérito e boas obras não temos; aja para conosco em graça.”
(Tehillim Rabá, 119:123).

Não limite O Eterno!

Outra instrução fundamental se encontra nos passukim 11 ao 19. Ali O Eterno enfatiza que não havia nenhuma imagem quando a Torah estava sendo entregue e que, por isso, os filhos de Israel não deveriam confeccionar qualquer tipo de imagem como algo a ser adorado. Certamente o objetivo destas palavras era levar os hebreus ao entendimento de que O Eterno não está limitado as formas conhecidas, pois estamos diante de um Ser que é transcendente que “É” e “Faz” muito mais do que podemos compreender. Como Ele mesmo se revelou por meio do profeta Yeshayahu (Isaías):

Lembrai-vos disto, e considerai; trazei-o à memória, ó prevaricadores.
Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou YHWH, e não há outro Elohim, não há outro semelhante a mim.
Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade.
(Yeshayahu/Isaías 46:8-10)


Shabat Shalom !!!