sábado, 2 de novembro de 2013

Sedrá para o Shabat de 02/11/13 (D’varim 4)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

Neste Shabat, poderemos observar o momento em que Moshe passa, de fato, a explicar a Torah ao povo e é a partir desta explicação que começamos a perceber o caráter prático da Torah se sobressaindo em relação ao aspecto filosófico.
Poderemos também notar que alguns pontos fundamentais nas discussões entre grupos judaicos acerca da observância da Torah, se concentram neste trecho do livro. 

Teoria e Prática.

Logo no primeiro passuk (versículo), a Torah é revelada como algo prático. Ou seja, a razão dela existir é o cumprimento de seus preceitos, pois os princípios nela contidos quando praticados gerariam não apenas a sobrevivência dos filhos de Israel, mas também a recompensa:

Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes; para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o YHWH Elohim de vossos pais vos dá.
(D’varim/Deuteronômio 4.1)

 Este processo nos parece bem simples: primeiro devemos ouvir, conhecer a Lei e depois cumpri-la. Não haverá equilíbrio se apenas uma das etapas for observada, pois não é suficiente apenas “ouvir” no sentido de se obter a informação, isto é, ter a teoria, pois sem a prática o processo é interrompido, logo, não se poderá experimentar o fruto decorrente das ações propostas pelos preceitos.
No primeiro Século d.C. Temos alguns documentos que corroboram com este pensamento, vejamos:

E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos.
Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural;
Porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era.
Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecediço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.
(Ya’akov/Tiago 1.22-25)

E também:

Porque os que ouvem a lei não são justos diante do Eterno, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.
(Ruhomayah/Romanos 2.13)

Infelizmente, existem nas mais diversas comunidades, pessoas com muito conhecimento teórico da Torah e também dos profetas além de outros escritos, mas no cotidiano não se vê na prática aquilo que dizem conhecer ou mesmo saber “desde a infância” como vemos em outro documento da mesma época dos que foram citados acima:

E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna?
E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é YHWH. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.
Disse-lhe ele: Quais? E Yeshua disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho;
Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda?
Disse-lhe Yeshua: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.
E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades.
(Matitiyahu/Mateus 19.16-22)

Os ensinamentos do Rabi Yeshua enfatizavam a prática da Torah e não apenas as eventuais conceituações teóricas sobre os mais diversos aspectos da Lei. Entretanto, devemos atentar para uma questão sempre presente no que diz respeito ao cumprimento da Torah, nos referimos à interpretação, são tantas as interpretações sobre algum aspecto da Torah, que muitos nem sabem como cumpri-lo... Abordaremos este tema a seguir.

Letra X Espírito; Severidade X Flexibilidade.

Não podemos ignorar os diversos pontos de vistas existentes acerca da Torah, a prova disso são os vários grupos judaicos existentes e suas formas de observarem os preceitos nela contidos, são tantos que nos faltará tempo e espaço neste comentário para falar sobre eles! Contudo, ainda que resumidamente, falaremos de uma rivalidade histórica dentro de um dos seguimentos judaicos mais influentes de todos os tempos, os P’rushim (Fariseus).
Muito já se falou e escreveu sobre “Beit Hilel” e “Beit Shamai” (Casa de Hilel e Casa de Shamai). Estes grupos, cujos fundadores tiveram seus nomes como referência para identificação da forma como interpretavam a Torah, são amplamente citados nos escritos talmúdicos, de modo que estão registradas mais de trezentas controvérsias sobre como cumprir a “Lei”, protagonizadas por estas duas escolas! Enquanto a Beit Hilel defendia uma postura e interpretação mais moderada, uma característica que lhe conferiu como a vertente mais ‘espiritual’ dentre as duas casas. A Beit Shamai por sua vez, era mais severa e literal com relação à observância e interpretação, assim, os proponentes desta casa defendiam a ‘Letra’. Um exemplo desta diferença pode ser comprovado logo abaixo:

Um pagão apresentou-se a shamai e lhe disse: “converter-me-ei ao judaísmo se me puderes ensinar toda Torah, a Lei inteira, enquanto possa me sustentar sobre um só pé.” Shamai o expulsou com a vara que tinha na mão. Quando se apresentou a Hilel com a mesma pretensão, Hilel o converteu, respondendo ao seu pedido da seguinte maneira: “O que não queres que te faça a ti, não faças a teu próximo. Eis toda a Lei; todo o resto – é mero comentário, vai e estuda.” (Talmud. Tratado Shabat 31 A)
Por isso, no mesmo tratado do Talmud, entende-se a expressão:

“Nossos rabinos ensinaram: Um homem deve ser sempre amável como Hilel, e não impaciente como Shamai.” (Shabat 30b).

Tais palavras estão em harmonia com a Torah, que ensina:

Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.
(Vayikrá/Levítico 19.18).

Diante disso, devemos estar atentos quanto à literalidade e espiritualidade dos textos para não incorrermos em erro interpretativo e impedirmos que vidas se acheguem ao Eterno.

Quem conta um conto...

Outra importante instrução encontra-se no passuk (versículo) 2, vejamos:

Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos de YHWH vosso Elohim, que eu vos mando.
(D’varim/Deuteronômio 4.2)

No relato da criação, podemos observar algo que demonstra o porquê devemos levar tão a sério a ordem de não se acrescentar palavras ao que foi ordenado pelo Eterno... Vejamos:

Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o YHWH Elohim tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Elohim disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Elohim: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais.
(Bereshit/Gênesis 3.1-3)

Se compararmos a resposta de Chawah (Eva) à serpente no terceiro passuk (versículo) do perek (capítulo) 3, com o que diz Bereshit (Gênesis)2.17 veremos que desde os primórdios existe na humanidade a tendência de se acrescentar palavras às instruções do Eterno, vejamos:

E ordenou YHWH Elohim ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
(Bereshit/Gênesis 2.16-17)

Podemos constatar que a instrução dada pelo Eterno dizia que não se deveria COMER da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas Chawah (Eva) acrescentou que além de comer também não se deveria TOCAR! O resultado deste relato, sendo uma alegoria ou não, todos já conhecem.
Ao acrescentar algo ao que havia sido dito pelo Eterno, Chawah demonstrava que não estava atenta as palavras de YHWH Elohim, assim, a serpente pode enganar a mulher. Infelizmente esta história continuou a se repetir ao longo da história como podemos verificar ao longo do texto sagrado:

E YHWH falou a Moisés dizendo:
Toma a vara, e ajunta a congregação, tu e Arão, teu irmão, e falai à rocha, perante os seus olhos, e dará a sua água; assim lhes tirarás água da rocha, e darás a beber à congregação e aos seus animais.
Então Moisés tomou a vara de diante de YHWH, como lhe tinha ordenado.
E Moisés e Arão reuniram a congregação diante da rocha, e Moisés disse-lhes: Ouvi agora, rebeldes, porventura tiraremos água desta rocha para vós?
Então Moisés levantou a sua mão, e feriu a rocha duas vezes com a sua vara, e saiu muita água; e bebeu a congregação e os seus animais.
E THWH disse a Moisés e a Arão: Porquanto não crestes em mim, para me santificardes diante dos filhos de Israel, por isso não introduzireis esta congregação na terra que lhes tenho dado.
(Bamidbar/Números 20.7-12)

Podemos dizer que de certa forma, Moshe “acrescentou” algo ao que havia sido dito pelo Eterno e a conseqüência disto foi a proibição que ele recebeu de entrar na Terra Prometida.
Outro aspecto interessante sobre “acréscimos” estaria descrito no perek (capítulo) seguinte a este que estamos comentando, trata-se de D’varim (Deuteronômio) 5.22 (Na Torah da Sefer e na da Maayanot, o passuk/versículo é o 19):

Estas palavras falou o Senhor a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridão, com grande voz, e nada acrescentou; e as escreveu em duas tábuas de pedra, e a mim mas deu.
(D’varim/Deuteronômio 5.22)

Como diz o próprio texto, O Eterno ולא יסף (VeLo Yasaf)“nada acrescentou” ao que foi dado no monte. Sendo assim, o que seria então a Torah Oral que alguns defendem como as palavras que foram, segundo acreditam, explicações e interpretações da Torah escrita, ditas a Moshe, denominada como “Torah she-Be’alpeh”. Tal entendimento gerou muitas discussões ao longo dos séculos e para abordar toda a celeuma nos faltaria tempo e espaço para elencar todas as derivações desta questão. Contudo, gostaríamos de citar apenas uma situação mais recente envolvendo um seguimento judaico denominado “Karaitas”.
A palavra caraíta (do hebraico קראים, karaim ou bnei mikra, "Seguidores das
Escrituras"), é a denominação do grupo que defende unicamente a autoridade das Escrituras Hebraicas como fonte de Revelação Divina. Rejeitam o judaísmo rabínico como por exemplo o Talmud e a Mishná (aceitos pelo judaísmo rabínico). Não seguem costumes judaicos rabínicos como o uso de peiot, tefilin e afins. A história dos karaitas esta amplamente registrada em livros e na internet, por isso só iremos transcrever um pequeno resumo para que o prezado leitor tenha uma breve noção deste seguimento:

Desde a época do Segundo Templo existiam grupos no judaísmo que defendiam a autoridade única e exclusiva da Torá escrita, em oposição aos que seguiam também as tradições posteriores conhecidas como a Torá oral. Entre as seitas que seguiam unicamente a Torá escrita estavam os tzadokim (saduceus) e os betusianos. Esses se opunham aos perushim (Fariseus) que defendiam ter Deus lhes revelado, junto com a Torá escrita, uma Torá oral, que era passada de geração em geração pelos estudiosos, mestres e profetas.
Essas seitas continuaram a existir mesmo depois da destruição do Templo no ano de 70 d.C., mas com a queda de Jerusalém, a autoridade central representada pelo Templo deixou de existir, fortalecendo as comunidades locais e seus centros de estudo (sinagogas), que eram majoritariamente farisaicas. Esses fariseus posteriormente dariam origem ao judaísmo rabínico, compilando suas leis e tradições em sua obra conhecida como Talmud.
O Talmud no entanto não foi aceito por parcela da comunidade judaica, que opôs forte resistência ao judaísmo rabínico. No séc. VIII d.C., Anan ben David organizou os diversos elementos antitalmúdicos e conseguiu convencer o Califado a estabelecer um segundo exilarcado para aqueles que não seguissem as práticas talmudistas. Os seguidores de Anan foram conhecidos como "ananitas" e posteriormente misturando-se a outras seitas anti-rabínicas constituíram o Caraísmo.

Contudo, devemos dizer que Anan ben David, não foi o primeiro líder a defender esta perspectiva, tendo em vista que a organização deste grupo se deu apenas no Século VIII. Já no primeiro Séc. Outro Líder se destacava com a proposta de uma superioridade das escrituras sobre as tradições do povo. Estamos nos referindo ao Rabi Yeshua HaNetzari, vejamos um exemplo:

Então chegaram ao pé de Yeshua uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:
Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem pão.
Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Elohim pela vossa tradição?
Porque Elohim ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá.
Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe,
E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Elohim.
(Matitiyahu/Mateus 15.1-6)

Os discípulos do Rabi Yeshua deram continuidade a esta proposta, como foi documentado por Jerônimo (Nascido no Século IV d.C.) num comentário sobre Yeshayahu (Isaías) 9.1-4:

 “Os nazarenos, cuja opinião coloquei acima, tentam explicar esta passagem da seguinte forma: ‘Quando o Messias veio e sua proclamação brilhou, a terra de Zebulon e Naftali primeiro de todos foram libertas dos erros dos escribas e dos p’rushim e Ele removeu de seus ombros o pesadíssimo jugo das tradições judaicas. Depois, contudo a proclamação se tornou mais dominante, o que significa que a proclamação se multiplicou através das boas novas do emissário Sha’ul (Paulo) que foi o último dos emissários. E as boas novas do Messias brilharam para as tribos mais distantes e pelo caminho de todo o mar. Finalmente todo o mundo que anteriormente andava ou se assentava nas trevas e era aprisionado pelas amarras da idolatria e da morte, viu a clara Luz das boas novas.”

De fato, este comentário confirma o que está registrado no livro de  Ma’assei (Atos) acerca desta perspectiva:

E O Eterno, que conhece os corações, lhes deu testemunho, dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós; E não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé.
Agora, pois, por que tentais ao Eterno, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar?
(Ma’assei/Atos 15.8-10)

Vale ressaltar que a discussão aqui não era a vigência da Torah, mas se a salvação estava condicionada as Obras ou na misericórdia do Eterno. Situação semelhante a que é retratada no Talmud como podemos constatar:

“Talvez Tu tenhas grande prazer em nossas boas obras? Mérito e boas obras não temos; aja para conosco em graça.”
(Tehillim Rabá, 119:123).

Não limite O Eterno!

Outra instrução fundamental se encontra nos passukim 11 ao 19. Ali O Eterno enfatiza que não havia nenhuma imagem quando a Torah estava sendo entregue e que, por isso, os filhos de Israel não deveriam confeccionar qualquer tipo de imagem como algo a ser adorado. Certamente o objetivo destas palavras era levar os hebreus ao entendimento de que O Eterno não está limitado as formas conhecidas, pois estamos diante de um Ser que é transcendente que “É” e “Faz” muito mais do que podemos compreender. Como Ele mesmo se revelou por meio do profeta Yeshayahu (Isaías):

Lembrai-vos disto, e considerai; trazei-o à memória, ó prevaricadores.
Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou YHWH, e não há outro Elohim, não há outro semelhante a mim.
Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade.
(Yeshayahu/Isaías 46:8-10)


Shabat Shalom !!!

Nenhum comentário:

Postar um comentário