segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Reparando o Altar


Por Yochanan ben Avraham

Introdução

Um dos episódios mais marcantes da Bíblia é o relato do desafio de Eliyahu ha navi (Elias o profeta) aos profetas de Ba’al. Este acontecimento se deu em um momento de grave crise no Reino do Norte - (Israel). Neste tempo, Israel era governado por Achav (Acab) que foi considerado pior que seus antecessores.
Foi no reino de Achav que a idolatria, mais uma vez e de forma oficial, tentou se consolidar entre a descendência de Avraham, isso por si só já indica o quão baixo estava o nível espiritual daquela sociedade. Este baixo nível espiritual teve como consequência uma grande seca sobre aquela região.
Esta história sinaliza para diversas situações que passamos durante a nossa caminhada de Fé e nosso desenvolvimento espiritual, o desenrolar dos acontecimentos ali registrados nos oferece, por meio de símbolos e analogias, algumas informações que podem explicar os porquês de nossas almas estarem, como disse o salmista, em “sequidão de estio” (Tehilim/Salmos 32.4).

Entendendo a seca

Então Elias, o tisbita, dos moradores de Gileade, disse a Acabe: Vive YHWH Elohei Israel, perante cuja face estou, que nestes anos nem orvalho nem chuva haverá, senão segundo a minha palavra. (Melachim alef / 1 Reis 17.1).

A sentença dada pelo profeta, não foi segundo o que ele quis ou achou que seria adequado e justo para aquele momento, mas o anuncio do que já estava previsto pela Lei (Torah) para situações conforme aquela que estava sendo vivida pelo povo, veja D’varim (Deuteronômio) 11. 10-17:

10 Porque a terra que passas a possuir não é como a terra do Egito, de onde saíste, em que semeavas a tua semente, e a regavas com o teu pé, como a uma horta.
11 Mas a terra que passais a possuir é terra de montes e de vales; da chuva dos céus beberá as águas;
12 Terra de que YHWH Eloheicha tem cuidado; os olhos de YHWH Eloheicha estão sobre ela continuamente, desde o princípio até ao fim do ano.
13 E será que, se diligentemente obedecerdes a meus mandamentos que hoje vos ordeno, de amar a YHWH Eloheichem, e de o servir de todo o vosso coração e de toda a vossa alma,
14 Então darei a chuva da vossa terra a seu tempo, a temporã e a serôdia, para que recolhais o vosso grão, e o vosso mosto e o vosso azeite.
15 E darei erva no teu campo aos teus animais, e comerás, e fartar-te-ás.
16 Guardai-vos, que o vosso coração não se engane, e vos desvieis, e sirvais a outros deuses, e vos inclineis perante eles;
17 E a ira de YHWH se acenda contra vós, e feche ele os céus, e não haja água, e a terra não dê o seu fruto, e cedo pereçais da boa terra que o YHWH vos dá.

Como podemos ver, a seca e escassez de Israel era consequência de sua transgressão a Torah!

A Prova do Crime

Melachim alef (1 Reis) 18.30, resume muito bem como estava a emunah* (Fé/Fidelidade) dos israelitas daquele tempo. Vejamos o texto:

“Então Elias disse a todo o povo: Chegai-vos a mim. E todo o povo se chegou a ele; e restaurou o altar de YHWH, que estava quebrado.

*Emunah: palavra hebraica geralmente traduzida como Fé, mas é melhor interpretada como Fidelidade.

Podemos observar que o altar do Eterno estava quebrado, este fato esta repleto de símbolos e significados, mas antes de comentá-los devemos informar que este altar não tinha a mesma forma aparente dos altares do Mishkan (santuário móvel) e, posteriormente do Beit hamikdash (O Templo de Jerusalém), embora tivesse tanta eficácia quanto estes. O altar reparado por Eliyahu era mais primitivo, semelhante aos altares que eventualmente eram erigidos pelos patriarcas e mesmo Mosheh (Moisés) em tempos pré-Tabernáculo/Templo.
O altar trás consigo a representação das relações com o sagrado e transcendente, sendo assim, ao percebermos que o altar dedicado ao Eterno estava quebrado, é evidente que a relação entre Israel e seu Elohim estava abandonada. E quando existe esta lacuna entre nós e o Eterno, abre-se oportunidades para outras relações, pois ficamos expostos a outras proposições e perspectivas que, geralmente estão em desacordo com as que o Eterno nos deu. Portanto, a proliferação de falsos profetas em Israel tipifica muito bem a condição daqueles que, ao negligenciarem sua relação com Eterno, entram em profundas angustias, com uma sensação de “aridez espiritual”.
Quando analisamos o referido trecho (1Rs 18.30) em seu texto original, vemos emergir um aspecto muito interessante daquela situação, que certamente reverbera em nossos dias, tanto individual quanto coletivamente. É o seguinte, a expressão hebraica para quebrado (caído ou demolido), é “heharus” que vem da raiz primitiva “haras” que significa: puxar para baixo; jogar para baixo; arrancado para baixo e etc., Tais significados nos remete às palavras atribuídas a Sha’ul ha shaliach (Paulo o emissário):

“Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra.” (Colossayah/Colossenses 3.2).

Isto significa que quando nos ocupamos demais com questões terrenas, a tendência é termos nosso nível de espiritualidade “puxado para baixo” e, deixando-o cair, acabamos sendo dominados pelo “yetzer hará” (maus impulsos) de nosso coração.
Em vias de regra, este mau impulso sempre encontra respaldo nos falsos profetas, gerando certa acomodação à situação, pois estes falsos profetas conseguem, por meio de seu “prestígio” e “habilidades”, justificarem a transgressão à Torah.

Uma revelação da guematria

Guematria é um sistema de cálculo das letras hebraicas, pois cada uma delas possui seu respectivo valor. Esta técnica é muito utilizada como especulação mística e por vezes oferece interpretações muito interessantes e profundas de determinadas passagens bíblicas que, numa leitura superficial, não poderiam ser detectadas. Abaixo tentaremos mostrar algo por trás das palavras que enriquecem nosso entendimento sobre o assunto.
A quantidade de profetas de Ba’al descritas no texto é de 450 indivíduos. 450 é o valor da palavra נקשnaqash”, que significa, dentre outras coisas, derrubar; enlaçar; armar ciladas e etc. Isto é muito esclarecedor se levarmos em conta o que a Torah diz sobre a origem dos tropeços e embaraços que podemos sofrer ao longo de nossa caminhada:

28 Guarda e ouve todas estas palavras que te ordeno, para que bem te suceda a ti e a teus filhos depois de ti para sempre, quando fizeres o que for bom e reto aos olhos de YHWH Eloheicha.
29 Quando YHWH Eloheicha desarraigar de diante de ti as nações, aonde vais a possuí-las, e as possuíres e habitares na sua terra,
30 Guarda-te, que não te enlaces (Tinaksho) seguindo-as, depois que forem destruídas diante de ti; e que não perguntes acerca dos seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações os seus deuses, do mesmo modo também farei eu. (D'varim/Deuteronômio 12.28-30)

Portanto, entende-se que falso profeta é aquele que embaraça o seu caminhar na Torah, é aquele que te “enlaça” com seus argumentos.

Promovendo a restauração.

Quando o profeta age efetivamente para mudar aquela situação, indicando o local para o desafio, chama-nos a atenção o lugar que ele determinou para o evento – “Har haKarmel” (o monte Karmel). A curiosidade sobre isto se dá porque em se tratando de Reino do Norte (Israel/Efraim), haviam outros lugares mencionados no Tanach como sendo mais importantes para aquele povo! Seriam eles o Monte Gerizim, (até hoje considerado como local sagrado pelos samaritanos, pois nele foi construído o Templo samaritano que João Hircano I (ou Simeão, o Justo), destruiu no ano 128 a.C.). Gerizim era o “Monte da Benção” mencionado em D’varim (Deuteronômio) 11.29. Os outros locais são Beith-el e Dan conforme descrito em Melachim alef (1 Reis) 11.29... Logo, a escolha do Monte Karmel salta aos nossos olhos levando-nos a especular as razões dessa escolha, proporcionando uma hipótese profética a tudo que foi feito ali.
A palavra que dá nome ao monte,  כרמל “Karmel”, significa principalmente terra fértil, e vem da raiz  כרמ “Kerem” que por sua vez significa Vinha. Ou seja: Estaria o profeta nos dizendo que o caminho para restauração começaria numa vinha? Considerando que vinha é um lugar de videiras, compare isso com as palavras de certo rabino:

1  Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador.
2 Toda a vara em mim, que não dá fruto, a tira; e limpa toda aquela que dá fruto, para que dê mais fruto.
3 Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado.
4 Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes em mim.
5 Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.
6 Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem.
7 Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito.
8 Nisto é glorificado meu Pai, que deis muito fruto; e assim sereis meus discípulos. (Bessorah Yochanan /Boas Novas de João 15.1-8)

Seria isto uma coincidência ou um “código” para que se identificasse o Mashiach ben Yosef, que dentro da expectativa messiânica seria aquele que teria a tarefa de reunir os dispersos de Israel antes da vinda do Mashiach ben David?
Outra coisa que alimenta a hipótese apresentada é a seguinte: se o primeiro passo para a restauração era um encontro no “Karmel”, ou melhor, em “kerem” (lugar de videiras), Rabi Yeshua não estaria exagerando ao dizer que ninguém chegaria ao Pai senão por ele! Esta ousada expressão está alinhada com a interpretação da comunidade de Qumran, pois para esta o Malki-Tsedek (Mestre da Justiça) traria a “halachá” (caminhar na Torá/Interpretação da Torá) definitiva, conforme se observa no “Pesher*” do livro de Havaquq (Habacuque).

*Pesher: é uma palavra hebraica que significa "interpretação", no sentido de "solução”.

A literatura samaritana, mais especificamente o “Meimar” também oferece uma interpretação semelhante, onde diz que o “Taheb”* (Restaurador) – um equivalente messiânico, traria as palavras de Elohim.
*Sobre o “Taheb”, Sugerimos a leitura do seguinte artigo:

Estes detalhes só reforçam o pensamento de que as sagradas escrituras são muito mais que palavras e que acessar um entendimento mais elevado delas, requer de nós maior separação e reverência àquele que as inspirou.
Outra ação que Eliyahu fez que nos chamou atenção, foi o fato dele assumir sua identidade mesmo estando em desvantagem numérica em relação aos profetas de Ba’al, algo que revela profundos traços de fidelidade ao Eterno, pois Sua Torah ensina:

Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda falarás, tomando parte com a maioria para torcer o direito. (Shemot/Êxodo 23.2).

Sobre assumir (ou não) uma identidade e suas atribuições, temos em outros documentos antigos, a ideia da consequência de, por exemplo, uma omissão:

1 E veio a palavra de YHWH EL a Jonas, filho de Amitai, dizendo:
2 Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença.
3 Porém, Jonas se levantou para fugir da presença de YHWH para Társis. E descendo a Jope, achou um navio que ia para Társis; pagou, pois, a sua passagem, e desceu para dentro dele, para ir com eles para Társis, para longe da presença de YHWH.
4 Mas YHWH mandou ao mar um grande vento, e fez-se no mar uma forte tempestade, e o navio estava a ponto de quebrar-se. (Yonah/Jonas. 1.1-4)

Outro texto que diz respeito à omissão de uma identidade:

 69 Ora, Pedro estava assentado fora, no pátio; e, aproximando-se dele uma criada, disse: Tu também estavas com Yeshua, o galileu.
70 Mas ele negou diante de todos, dizendo: Não sei o que dizes.
71 E, saindo para o vestíbulo, outra criada o viu, e disse aos que ali estavam: Este também estava com Yeshua, o Nazareno.
72 E ele negou outra vez com juramento: Não conheço tal homem.
73 E, daí a pouco, aproximando-se os que ali estavam, disseram a Pedro: Verdadeiramente também tu és deles, pois a tua fala te denuncia.
74 Então começou ele a praguejar e a jurar, dizendo: Não conheço esse homem. E imediatamente o galo cantou.
75 E lembrou-se Pedro das palavras de Yeshua, que lhe dissera: Antes que o galo cante, três vezes me negarás. E, saindo dali, chorou amargamente. (Matitiyahu/Mateus 26. 69-75)

Se negarmos quem somos, consequentemente negamos nossas atribuições e se negamos nossas atribuições, nossa vida perde o senso de direção.
Outra ação emblemática do profeta diz respeito à restauração do altar propriamente dita:

30 Então Elias disse a todo o povo: Chegai-vos a mim. E todo o povo se chegou a ele; e restaurou o altar de YHWH, que estava quebrado.
31 E Elias tomou doze pedras, conforme ao número das tribos dos filhos de Jacó, ao qual veio a palavra de YHWH, dizendo: Israel será o teu nome.
32 E com aquelas pedras edificou o altar em nome de YHWH... (Melachim alef/1 Reis 18. 30 – 32).

Reparem que para restaurar o altar, que em nossa argumentação seria a base do relacionamento com o Eterno, Eliyahu tomou doze pedras, conforme o número das tribos de Israel, indicando que não podemos supor uma restauração sem considerarmos o papel de Israel, ou seja, suas perspectivas em relação à Torah, pois como costumamos dizer, “Teologia” que não considera o contexto histórico de Israel não é “Teologia”... É Ficção.

Concluindo...

Evidentemente o texto se refere a uma situação no passado de Israel e está voltado ao coletivo, não ignoramos isso. No entanto, o bem estar do coletivo começa no individuo, pois os princípios que regem o coletivo valem para o indivíduo e vice versa! Se formos preteristas em relação ao relato bíblico, certamente correremos o risco de não experimentarmos a eficácia e beleza dos princípios deste relato. No primeiro Século, Sha’ul ha Shaliach (Paulo o emissário), escrevendo aos talmidim (discípulos) que estavam em Corinto (ver Curintayah alef/ 1 Coríntios 10), dá a entender que os acontecimentos do passado dos hebreus serviam como símbolos e sinais para nos alertar, de modo que não venhamos repetir os erros que alguns de nossos ancestrais cometeram.
Que possamos seguir os princípios ensinados por Eliyahu ha navi e assim cooperarmos com a restauração de Israel!!!


Shalom L’kulam!!!

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