sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sedrá para o Shabat de 09/11/13 (D’varim 5)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

O perek (capítulo) a ser estudado neste shabat, trás consigo um dos aspectos mais importantes vida israelita, pois nele está contido aquilo que se entende como a profissão de Fé do povo hebreu, isto é, a recitação do Shema.
A importância deste capítulo é ao grande que alguns chegam a dizer que a compreensão deste detalhe implica na compreensão de todo o livro! Mas ao redor deste importante aspecto da vida israelita, existem algumas discussões e controvérsias históricas que podem, indiretamente, afetar o principal sentido de suas palavras, a fidelidade à Torah do Eterno.

Ouvir é obedecer.

E chamou Moisés a todo o Israel, e disse-lhes: Ouve, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo aos ouvidos; e aprendê-los-eis, e guardá-los-eis, para os cumprir.
(D’varim/Deuteronômio 5.1)

Quando Moshe convoca o povo a ouvir os estatutos e juízos, não era simplesmente uma ordem para se prestar atenção no som, mas para que se desse ouvido, no sentido de se obedecer as palavras que estavam sendo pronunciadas. Ou seja, o povo estava sendo conclamado à fidelidade... Com isso em mente, podemos afirmar que não existe fidelidade ao Eterno desconectada da obediência à Seus estatutos e juízos.
No primeiro século, este conceito foi muito bem definido por Sha’ul, em uma de suas cartas, mais especificamente aos Talmidim (discípulos) que se reuniam em Roma:

De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Elohim.
(Ruhomayah/Romanos 10.17)

Este texto demonstra que o nascedouro da Fé (Fidelidade) está no “ouvir”, no “dar ouvidos” que nada mais é como foi dito anteriormente, do que obedecer, pois a palavra aramaica relativa à hebraica “shema” (ouvir), é “sheme” que também pode ser traduzida como obedecer... De modo que o texto acima poderia ser traduzido da seguinte maneira:

“Portanto, a fé vem do obedecer ao que se ouve, isto é, obedecer ao que se ouve da palavra de Elohim.”

A nível de esclarecimento, devemos ressaltar que a “Palavra de Elohim” que o texto propõe é a Torah, pois ela é o fundamento da doutrina dos profetas e emissários do primeiro século.

Como e quando?

Como dissemos na introdução deste comentário, existiram algumas controvérsias em relação a como e quando o shema deveria ser recitado.
Tais discussões foram documentadas no Talmud nos tratados Masechet Berachot 10B, sobre a exigência da Torah de se recitar o Shema: "Be'shochbecha U've'kumecha" ("quando você deitar e quando você se levanta"), foi registrado um debate entre a Beit Hilel (a escola do estudioso Hilel) e a Beit Shamai (a escola do estudioso Shamai) sobre esta questão. A Beit Hilel entendia este versículo como uma referência para o momento adequado para esta recitação: é preciso ler o Shema, à noite, quando as pessoas normalmente se deitam, e de manhã, quando as pessoas geralmente se levantam de suas camas. A Beit Shamai, por outro lado, interpretou esta frase como forma de se estabelecer a posição desejada durante a recitação do Shema: à noite, deve-se deitar enquanto se recita o Shema, e na parte da manhã, a pessoa deve recitar o Shema em pé.  De acordo com a Beit Hilel, a Torá não impõe requisitos relativos à posição correta enquanto recitava Shema, enquanto a Beit Shamai requer que estejamos de pé para recitar o Shema de dia e reclinados para recitar o Shemá noturno.

A nossa opinião é de que fomentar a discussão sobre como e quando recitar, pode nos afastar do real propósito que é cumprir as palavras que são pronunciadas e, consequentemente, ouvidas. Ou seja, não basta recitar estas palavras ao amanhecer e  ao anoitecer, devemos nos esforçar para cumpri-las durante todo o dia!

Para conhecimento do prezado leitor, informamos que no primeiro século d.C., duas escolas rabínicas se desenvolveram, (a escola de Hilel e a escola de Shamai). Cada uma destas escolas representava uma interpretação diferente da lei mosaica. A escola de Hilel era liberal, enquanto a escola de Shamai era conservadora. Essas escolas demonstravam as diferenças de opinião que giravam em torno de muitas questões. Neusner menciona que quando Hilel dizia sujo, Shamai dizia limpo, e assim por diante, tamanha era a diferença entre as duas escolas. (NEUSNER, Jacob. The pharisees: rabbinic perspectives. Hoboken, NJ: Ktav, 1973. p. 59.)

Outra controvérsia!

Há algum tempo atrás, chegamos ao conhecimento de outra polêmica envolvendo o Shema. Agora a coisa é mais complicada, pois o que se questiona não era COMO e QUANDO recitar, mas O QUE recitar! Vejamos: No Talmud há uma citação que indica que os P’rushim (fariseus) recitavam um texto diferente daquele que era recitado por outros grupos:

"Seria apropriado ler os Asseret HaDibrot [Dez Ditos/“Mandamentos”] diariamente; e por que não fazemos? Por causa do zelo dos Minim*, para que não digam: Somente esse foram dados a Moshe no Sinai”. (Yerushalmi T. Berachot 3c)

E ainda:

"Eles [ie. os sacerdotes] recitavam os Asseret HaDibrot [Dez Ditos/Mandamentos], o Shemá, as seções 'e sucederá que se diligentemente ouvirdes' e 'E YHWH disse,' 'Verdadeiro e firme,' o Avodá e bênção sacerdotal.' Rab. Judá disse em nome de Samuel: Fora do Templo, também o povo desejava fazer o mesmo, mas foram impedidos em razão das insinuações dos Minim*. Semelhantemente, foi ensinado: R. Natan diz: Eles buscaram fazer o mesmo fora do Templo, mas isso foi há muito abolido em razão das insinuações dos Minim. Rabá Bar Hanah teve uma idéia de instituir isto em Sura, mas R. Hisda lhe disse: Isto foi há muito abolido em razão das insinuações dos Minim. Amemar teve a idéia de instituí-lo em Nahardea, mas R. Ashi lhe disse: Isto foi há muito abolido em razão das insinuações dos Minim*”. (Bavli T. Berachot 12a)

Obs.:
“Minim” é o termo utilizado pelos P’rushim para se referirem aos hereges, geralmente aplicado aos seguidores do Rabi Yeshua HaNetsari.

Diante do exposto, fica claro que por causa de divergências interpretativas, os P’rushim decidiram, por sua própria conta, alterar o texto a ser recitado, Vejamos:

Keriat Shema Tradicional:

Ouve, Israel, Adonai é nosso D’us, Adonai é Um.
Amarás a Adonai, teu D’us, com todo teu coração, Estas palavras que Eu te ordeno hoje ficarão sobre teu coração. Inculca-las-ás diligentemente em teus filhos e falarás a respeito delas, estando em tua casa e andando por teu caminho, e ao te deitares e ao te levantares. Ata-las-ás como sinal sobre tua mão e serão por filactérios entre teus olhos. Escreve-las-ás nos umbrais de tua casa e em teus portões.

Acontecerá se obedecerdes diligentemente Meus preceitos, que Eu vos ordeno neste dia, de amar a Adonai, vosso D’us, e servi-Lo com todo vosso coração e com toda vossa alma; então darei a chuva para vossa terra a seu tempo, a chuva precoce e a chuva tardia; colherás teu grão, teu mosto e teu azeite. Darei erva em teu campo para teu gado, e comerás e te saciarás.

Guardai-vos para que vosso coração não seja seduzido e desvieis e sirvais outros deuses e vos prostreis diante deles. Pois então se inflamará contra vós a ira de Adonai, e Ele fechará os céus e não haverá chuva, e a terra não dará seu produto. Então perecereis rapidamente da boa Terra que Adonai vos dá. Portanto, colocai estas Minhas palavras sobre vosso coração e sobre vossa alma, e atá-las-eis como sinal sobre vossa mão e serão por filactérios entre vossos olhos.
Ensiná-las-eis a vossos filhos, a falar a respeito delas, estando em tua casa e andando por teu caminho, e ao te deitares e ao te levantares. Escreve-las-ás nos umbrais de tua casa e em teus portões. A fim de que se multipliquem vossos dias e os dias de vossos filhos na Terra que jurou Adonai a vossos antepassados dar-lhes por todo o tempo em que os Céus estiverem sobre a Terra.

Disse Adonai a Moshê o seguinte: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que façam para si franjas nos cantos de suas vestimentas, por todas suas gerações. Prenderão na franja de cada borda um cordão azul-celeste. Serão para vós por tsitsit e os olhareis e recordareis todos os preceitos de Adonai, e os cumprireis; e não seguireis atrás de vosso coração e atrás de vossos olhos, por meio dos quais vos desviareis. Para que vos lembreis e cumprais todos Meus mandamentos e sejais santos para vosso D’us. Sou Adonai, vosso D’us, que vos tirou da terra do Egito para ser vosso D’us. Eu, Adonai, sou vosso D’us (Eu, Adonai, sou vosso D’us). É verdade.

Como podemos constatar o texto acima demonstra que a tradição rabínica estabeleceu o início do Shema em D’varim (Deuteronômio) 6.4 além de outros textos da Torah enquanto, pelo contexto, podemos observar que originalmente o texto recitado incluía os asseret hadibrot (Dez Ditos/dez Mandamentos), algo que, como dissemos anteriormente, o próprio Talmud confirma.
Portanto, o texto original recitado pelos israelitas era o seguinte:

Keriat Shema Original:

Ouve, ó Israel, os estatutos e juízos que hoje vos falo aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprirdes;
Eu sou YHWH teu Elohim que te tirei do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim;

Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra; não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu, YHWH teu Elohim, sou Elohim zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem, e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos;

Não tomarás o Nome de YHWH teu Elohim em vão, porque YHWH não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão;

Guarda o dia de Shabat, para o santificar, como te ordenou YHWH teu Elohim. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o Shabat de YHWH teu Elohim; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro das tuas portas para dentro, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu; porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que YHWH teu Elohim te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que YHWH teu Elohim te ordenou que guardasses o dia de Shabat;

Honra a teu pai e a tua mãe, como YHWH teu Elohim te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para que    te vá bem na terra que YHWH teu Elohim te dá;

Não assassinarás;

Não adulterarás;

Não furtarás;

Não dirás falsidade contra o teu próximo.

Não cobiçarás a mulher do teu próximo. Não desejarás a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.

Estas palavras falou YHWH a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz, e nada acrescentou. Tendo-as escrito em duas tábuas de pedra, deu-mas a mim.

Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou YHWH teu Elohim se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que passas para a possuir; para que temas a YHWH teu Elohim, e guardes todos os seus estatutos e mandamentos que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias da tua vida; e que teus dias sejam prolongados;

Ouve, pois, ó Israel, e atenta em os cumprires, para que bem te suceda, e muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse YHWH Elohim de teus pais;
Ouve, Israel, YHWH nosso Elohim, YHWH é um;
Amarás, pois, YHWH teu Elohim, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas.

É importante dizer que no final do século 19, foi descoberto por Walter Llewellyn Nash, secretário da Sociedade de Arqueologia Bíblica, um antigo papiro em hebraico adquirido no Egito Datado do século 2 AC, o manuscrito (denominado de papiro Nash), é um dos textos litúrgicos hebraicos mais antigos de que se tem notícia. O manuscrito preserva justamente a liturgia do Shemá em sua forma original! Sobre este papiro, o acadêmico F. C. Burkitt disse:


“... o papiro dá um texto contendo elementos tanto de Êxodo quanto de Deuteronômio, exatamente como se formaria um texto litúrgico de fato baseado no Pentateuco, porém não uma transcrição direta quer de Êxodo ou de Deuteronômio. Sabemos de ambos os Talmuds que o recitar diário do Decálogo antes do Shema' já foi costumeiro, e que a prática foi descontinuada por causa de heresias cristãs (sic). É, portanto razoável supor que este papiro contenha a adoração diária de um pio judeu egípcio que viveu antes do costume findar”. (Extraído do texto: “O Keriat Shema original: Corrigindo o erro fariseu.” por Sha’ul Bentsion)
 

Cabe ao leitor avaliar a questão e decidir quais as palavras que devem ser recitadas.

Concluindo...

Após considerarmos estas questões históricas envolvendo a proclamação do Shema, sugerimos que cada um dos asseret hadibrot (dez ditos) seja examinado com a devida atenção, após isto, considerando todas as possibilidades e implicações destas palavras, não ficando limitados às letras, mas buscando uma compreensão mais espiritual, certamente alcançaremos os mananciais que proporcionarão o tão desejado Shalom que este dia tem reservado aos que o guardam.


Shabat Shalom!!!

sábado, 2 de novembro de 2013

Sedrá para o Shabat de 02/11/13 (D’varim 4)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

Neste Shabat, poderemos observar o momento em que Moshe passa, de fato, a explicar a Torah ao povo e é a partir desta explicação que começamos a perceber o caráter prático da Torah se sobressaindo em relação ao aspecto filosófico.
Poderemos também notar que alguns pontos fundamentais nas discussões entre grupos judaicos acerca da observância da Torah, se concentram neste trecho do livro. 

Teoria e Prática.

Logo no primeiro passuk (versículo), a Torah é revelada como algo prático. Ou seja, a razão dela existir é o cumprimento de seus preceitos, pois os princípios nela contidos quando praticados gerariam não apenas a sobrevivência dos filhos de Israel, mas também a recompensa:

Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes; para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o YHWH Elohim de vossos pais vos dá.
(D’varim/Deuteronômio 4.1)

 Este processo nos parece bem simples: primeiro devemos ouvir, conhecer a Lei e depois cumpri-la. Não haverá equilíbrio se apenas uma das etapas for observada, pois não é suficiente apenas “ouvir” no sentido de se obter a informação, isto é, ter a teoria, pois sem a prática o processo é interrompido, logo, não se poderá experimentar o fruto decorrente das ações propostas pelos preceitos.
No primeiro Século d.C. Temos alguns documentos que corroboram com este pensamento, vejamos:

E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos.
Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural;
Porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era.
Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecediço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito.
(Ya’akov/Tiago 1.22-25)

E também:

Porque os que ouvem a lei não são justos diante do Eterno, mas os que praticam a lei hão de ser justificados.
(Ruhomayah/Romanos 2.13)

Infelizmente, existem nas mais diversas comunidades, pessoas com muito conhecimento teórico da Torah e também dos profetas além de outros escritos, mas no cotidiano não se vê na prática aquilo que dizem conhecer ou mesmo saber “desde a infância” como vemos em outro documento da mesma época dos que foram citados acima:

E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna?
E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é YHWH. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.
Disse-lhe ele: Quais? E Yeshua disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho;
Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda?
Disse-lhe Yeshua: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.
E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades.
(Matitiyahu/Mateus 19.16-22)

Os ensinamentos do Rabi Yeshua enfatizavam a prática da Torah e não apenas as eventuais conceituações teóricas sobre os mais diversos aspectos da Lei. Entretanto, devemos atentar para uma questão sempre presente no que diz respeito ao cumprimento da Torah, nos referimos à interpretação, são tantas as interpretações sobre algum aspecto da Torah, que muitos nem sabem como cumpri-lo... Abordaremos este tema a seguir.

Letra X Espírito; Severidade X Flexibilidade.

Não podemos ignorar os diversos pontos de vistas existentes acerca da Torah, a prova disso são os vários grupos judaicos existentes e suas formas de observarem os preceitos nela contidos, são tantos que nos faltará tempo e espaço neste comentário para falar sobre eles! Contudo, ainda que resumidamente, falaremos de uma rivalidade histórica dentro de um dos seguimentos judaicos mais influentes de todos os tempos, os P’rushim (Fariseus).
Muito já se falou e escreveu sobre “Beit Hilel” e “Beit Shamai” (Casa de Hilel e Casa de Shamai). Estes grupos, cujos fundadores tiveram seus nomes como referência para identificação da forma como interpretavam a Torah, são amplamente citados nos escritos talmúdicos, de modo que estão registradas mais de trezentas controvérsias sobre como cumprir a “Lei”, protagonizadas por estas duas escolas! Enquanto a Beit Hilel defendia uma postura e interpretação mais moderada, uma característica que lhe conferiu como a vertente mais ‘espiritual’ dentre as duas casas. A Beit Shamai por sua vez, era mais severa e literal com relação à observância e interpretação, assim, os proponentes desta casa defendiam a ‘Letra’. Um exemplo desta diferença pode ser comprovado logo abaixo:

Um pagão apresentou-se a shamai e lhe disse: “converter-me-ei ao judaísmo se me puderes ensinar toda Torah, a Lei inteira, enquanto possa me sustentar sobre um só pé.” Shamai o expulsou com a vara que tinha na mão. Quando se apresentou a Hilel com a mesma pretensão, Hilel o converteu, respondendo ao seu pedido da seguinte maneira: “O que não queres que te faça a ti, não faças a teu próximo. Eis toda a Lei; todo o resto – é mero comentário, vai e estuda.” (Talmud. Tratado Shabat 31 A)
Por isso, no mesmo tratado do Talmud, entende-se a expressão:

“Nossos rabinos ensinaram: Um homem deve ser sempre amável como Hilel, e não impaciente como Shamai.” (Shabat 30b).

Tais palavras estão em harmonia com a Torah, que ensina:

Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.
(Vayikrá/Levítico 19.18).

Diante disso, devemos estar atentos quanto à literalidade e espiritualidade dos textos para não incorrermos em erro interpretativo e impedirmos que vidas se acheguem ao Eterno.

Quem conta um conto...

Outra importante instrução encontra-se no passuk (versículo) 2, vejamos:

Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos de YHWH vosso Elohim, que eu vos mando.
(D’varim/Deuteronômio 4.2)

No relato da criação, podemos observar algo que demonstra o porquê devemos levar tão a sério a ordem de não se acrescentar palavras ao que foi ordenado pelo Eterno... Vejamos:

Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o YHWH Elohim tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Elohim disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Elohim: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais.
(Bereshit/Gênesis 3.1-3)

Se compararmos a resposta de Chawah (Eva) à serpente no terceiro passuk (versículo) do perek (capítulo) 3, com o que diz Bereshit (Gênesis)2.17 veremos que desde os primórdios existe na humanidade a tendência de se acrescentar palavras às instruções do Eterno, vejamos:

E ordenou YHWH Elohim ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
(Bereshit/Gênesis 2.16-17)

Podemos constatar que a instrução dada pelo Eterno dizia que não se deveria COMER da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas Chawah (Eva) acrescentou que além de comer também não se deveria TOCAR! O resultado deste relato, sendo uma alegoria ou não, todos já conhecem.
Ao acrescentar algo ao que havia sido dito pelo Eterno, Chawah demonstrava que não estava atenta as palavras de YHWH Elohim, assim, a serpente pode enganar a mulher. Infelizmente esta história continuou a se repetir ao longo da história como podemos verificar ao longo do texto sagrado:

E YHWH falou a Moisés dizendo:
Toma a vara, e ajunta a congregação, tu e Arão, teu irmão, e falai à rocha, perante os seus olhos, e dará a sua água; assim lhes tirarás água da rocha, e darás a beber à congregação e aos seus animais.
Então Moisés tomou a vara de diante de YHWH, como lhe tinha ordenado.
E Moisés e Arão reuniram a congregação diante da rocha, e Moisés disse-lhes: Ouvi agora, rebeldes, porventura tiraremos água desta rocha para vós?
Então Moisés levantou a sua mão, e feriu a rocha duas vezes com a sua vara, e saiu muita água; e bebeu a congregação e os seus animais.
E THWH disse a Moisés e a Arão: Porquanto não crestes em mim, para me santificardes diante dos filhos de Israel, por isso não introduzireis esta congregação na terra que lhes tenho dado.
(Bamidbar/Números 20.7-12)

Podemos dizer que de certa forma, Moshe “acrescentou” algo ao que havia sido dito pelo Eterno e a conseqüência disto foi a proibição que ele recebeu de entrar na Terra Prometida.
Outro aspecto interessante sobre “acréscimos” estaria descrito no perek (capítulo) seguinte a este que estamos comentando, trata-se de D’varim (Deuteronômio) 5.22 (Na Torah da Sefer e na da Maayanot, o passuk/versículo é o 19):

Estas palavras falou o Senhor a toda a vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridão, com grande voz, e nada acrescentou; e as escreveu em duas tábuas de pedra, e a mim mas deu.
(D’varim/Deuteronômio 5.22)

Como diz o próprio texto, O Eterno ולא יסף (VeLo Yasaf)“nada acrescentou” ao que foi dado no monte. Sendo assim, o que seria então a Torah Oral que alguns defendem como as palavras que foram, segundo acreditam, explicações e interpretações da Torah escrita, ditas a Moshe, denominada como “Torah she-Be’alpeh”. Tal entendimento gerou muitas discussões ao longo dos séculos e para abordar toda a celeuma nos faltaria tempo e espaço para elencar todas as derivações desta questão. Contudo, gostaríamos de citar apenas uma situação mais recente envolvendo um seguimento judaico denominado “Karaitas”.
A palavra caraíta (do hebraico קראים, karaim ou bnei mikra, "Seguidores das
Escrituras"), é a denominação do grupo que defende unicamente a autoridade das Escrituras Hebraicas como fonte de Revelação Divina. Rejeitam o judaísmo rabínico como por exemplo o Talmud e a Mishná (aceitos pelo judaísmo rabínico). Não seguem costumes judaicos rabínicos como o uso de peiot, tefilin e afins. A história dos karaitas esta amplamente registrada em livros e na internet, por isso só iremos transcrever um pequeno resumo para que o prezado leitor tenha uma breve noção deste seguimento:

Desde a época do Segundo Templo existiam grupos no judaísmo que defendiam a autoridade única e exclusiva da Torá escrita, em oposição aos que seguiam também as tradições posteriores conhecidas como a Torá oral. Entre as seitas que seguiam unicamente a Torá escrita estavam os tzadokim (saduceus) e os betusianos. Esses se opunham aos perushim (Fariseus) que defendiam ter Deus lhes revelado, junto com a Torá escrita, uma Torá oral, que era passada de geração em geração pelos estudiosos, mestres e profetas.
Essas seitas continuaram a existir mesmo depois da destruição do Templo no ano de 70 d.C., mas com a queda de Jerusalém, a autoridade central representada pelo Templo deixou de existir, fortalecendo as comunidades locais e seus centros de estudo (sinagogas), que eram majoritariamente farisaicas. Esses fariseus posteriormente dariam origem ao judaísmo rabínico, compilando suas leis e tradições em sua obra conhecida como Talmud.
O Talmud no entanto não foi aceito por parcela da comunidade judaica, que opôs forte resistência ao judaísmo rabínico. No séc. VIII d.C., Anan ben David organizou os diversos elementos antitalmúdicos e conseguiu convencer o Califado a estabelecer um segundo exilarcado para aqueles que não seguissem as práticas talmudistas. Os seguidores de Anan foram conhecidos como "ananitas" e posteriormente misturando-se a outras seitas anti-rabínicas constituíram o Caraísmo.

Contudo, devemos dizer que Anan ben David, não foi o primeiro líder a defender esta perspectiva, tendo em vista que a organização deste grupo se deu apenas no Século VIII. Já no primeiro Séc. Outro Líder se destacava com a proposta de uma superioridade das escrituras sobre as tradições do povo. Estamos nos referindo ao Rabi Yeshua HaNetzari, vejamos um exemplo:

Então chegaram ao pé de Yeshua uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:
Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem pão.
Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Elohim pela vossa tradição?
Porque Elohim ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá.
Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe,
E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Elohim.
(Matitiyahu/Mateus 15.1-6)

Os discípulos do Rabi Yeshua deram continuidade a esta proposta, como foi documentado por Jerônimo (Nascido no Século IV d.C.) num comentário sobre Yeshayahu (Isaías) 9.1-4:

 “Os nazarenos, cuja opinião coloquei acima, tentam explicar esta passagem da seguinte forma: ‘Quando o Messias veio e sua proclamação brilhou, a terra de Zebulon e Naftali primeiro de todos foram libertas dos erros dos escribas e dos p’rushim e Ele removeu de seus ombros o pesadíssimo jugo das tradições judaicas. Depois, contudo a proclamação se tornou mais dominante, o que significa que a proclamação se multiplicou através das boas novas do emissário Sha’ul (Paulo) que foi o último dos emissários. E as boas novas do Messias brilharam para as tribos mais distantes e pelo caminho de todo o mar. Finalmente todo o mundo que anteriormente andava ou se assentava nas trevas e era aprisionado pelas amarras da idolatria e da morte, viu a clara Luz das boas novas.”

De fato, este comentário confirma o que está registrado no livro de  Ma’assei (Atos) acerca desta perspectiva:

E O Eterno, que conhece os corações, lhes deu testemunho, dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós; E não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé.
Agora, pois, por que tentais ao Eterno, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar?
(Ma’assei/Atos 15.8-10)

Vale ressaltar que a discussão aqui não era a vigência da Torah, mas se a salvação estava condicionada as Obras ou na misericórdia do Eterno. Situação semelhante a que é retratada no Talmud como podemos constatar:

“Talvez Tu tenhas grande prazer em nossas boas obras? Mérito e boas obras não temos; aja para conosco em graça.”
(Tehillim Rabá, 119:123).

Não limite O Eterno!

Outra instrução fundamental se encontra nos passukim 11 ao 19. Ali O Eterno enfatiza que não havia nenhuma imagem quando a Torah estava sendo entregue e que, por isso, os filhos de Israel não deveriam confeccionar qualquer tipo de imagem como algo a ser adorado. Certamente o objetivo destas palavras era levar os hebreus ao entendimento de que O Eterno não está limitado as formas conhecidas, pois estamos diante de um Ser que é transcendente que “É” e “Faz” muito mais do que podemos compreender. Como Ele mesmo se revelou por meio do profeta Yeshayahu (Isaías):

Lembrai-vos disto, e considerai; trazei-o à memória, ó prevaricadores.
Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou YHWH, e não há outro Elohim, não há outro semelhante a mim.
Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade.
(Yeshayahu/Isaías 46:8-10)


Shabat Shalom !!!

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Sedrá para o Shabat de 26/10/13 (D’varim 1, 2 e 3)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

D’varim, termo hebraico que significa palavras, de fato é o nome apropriado para o quinto livro da Torah, pois este é um livro de discursos. Discursos estes que, explicavam “esta Torah” a todo povo hebreu.
Nestes três primeiros capítulos do livro, nos salta aos olhos algo fundamental para o estabelecimento de um povo... Estamos nos referindo à memória. Por isso, nosso comentário estará voltado para este aspecto e não necessariamente a todo os eventos mencionados nestes capítulos.

Memória e identidade.

No tehilim (Salmos) 90, temos uma oração atribuída a Moshe pedindo que lhe seja concedida capacidade para contar os dias até que se alcance a sabedoria:

Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios.
(Tehilim/Salmos 90.12)

Nenhuma sociedade terá continuidade se desprezar o seu passado, e a ligação com o passado é feita através da memória e é por meio dela que distinguimos o ontem do hoje,
confirmando que tivemos um passado, um caminho percorrido, enfim... Uma história. É essa história que nos dá um sentido de identidade, pois sabendo o que fomos e por onde passamos, sabemos quem somos e para onde devemos ir.
Há aproximadamente cinqüenta anos, o revolucionário conhecido por Che Guevara disse as seguintes palavras:

“Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”

Ao ler os primeiros capítulo de D’varim, vemos que o princípio citado pelo famoso revolucionário, já havia sido revelado há milênios! Contando os dias de sua peregrinação, pontuando os diversos eventos ocorridos durante o percurso, Israel encontraria o equilíbrio entre o que era, é e deveria ser.
Bem depois disso, já no primeiro século de nossa era, mais uma vez a memória é evocada como algo fundamental para o êxito de nossa caminhada:

Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem, e todos passaram pelo mar... Ora, tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos.
(Curintayah alef/1 Coríntios 10.1 e 11)

Verdadeiramente, um dos verbos mais significativos para o povo hebreu é “Lembrar”. É na lembrança que pode estar a diferença entre a vida e a morte, a benção e a maldição, este aspecto se torna interessante porque neste detalhe, algo presente na própria palavra revela algo importantíssimo,  ao utilizarmos a guemátria, isto é, o sistema de calculo das letras hebraicas, descobrimos que זכר “zakar” (Lembrar), tem o mesmo valor das palavras ברכה “berakah” (Benção) e בכרה “bekorah” (Primogenitura), ou seja, 227. Vale lembrar ainda que o sinal estabelecido pelo Eterno para distinguir seu povo é a guarda do Shabat, o único dos dez mandamentos que se inicia com a ordem, lembra-te!

Lembra-te do dia do sábado, para o santificar.
Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra.
Mas o sétimo dia é o sábado do YHWH teu Elohim; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas.
Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou YHWH o dia do sábado, e o santificou.
(Shemot/Êxodo 20.8-11)

Conclusão.

A benção e a primogenitura dos filhos de Israel estão intimamente relacionadas à lembrança, portanto, a sua memória. Logo, não é difícil imaginar porque Moshe começa seu discurso trazendo ao povo, as lembranças de tudo que viveram até chegar aquele ponto. Que neste Shabat, todos nós possamos aproveitar este momento para lembrar como chegamos até aqui e fazer os ajustes necessários para prosseguirmos nossa caminhada.


Shabat Shalom!!!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O dízimo cobrado pelas igrejas, cristãs ou não, é legítimo?

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

Uma das doutrinas bíblicas mais corrompidas se refere à cobrança do dízimo por parte das igrejas cristãs. Com o objetivo de trazer luz a este assunto nos propomos a dar uma pequena contribuição escrevendo este artigo. Pretendemos também que pessoas sinceras em sua devoção, ao lerem este artigo, possam discernir as coisas conforme estabelecidas pela bíblia e testemunhadas na História.
Tenho a certeza que muitas destas pessoas vivem oprimidas por causa deste assunto, pois aprenderam que se não dizimarem estariam “amaldiçoadas”. Por causa das “conseqüências” previstas, não têm coragem de perguntar se as coisas são de fato assim, pois se o fizerem já serão taxadas de rebeldes, incrédulos e coisas do gênero.
De fato, muitos líderes estão explorando a “boa fé” destas pessoas deturpando as escrituras e para legitimarem a extorsão cometida em “nome de Deus”, usam e abusam de técnicas persuasivas em seus eloqüentes discursos.
É bem verdade que alguns líderes não têm esta malícia e nem fazem idéia do quanto estão equivocados ao afirmarem o dízimo como se prega nas igrejas, mas se forem humildes para buscarem esclarecimentos sobre o tema, certamente irão repensar seus discursos e práticas.

Definindo o termo.

O substantivo מעשר “ma’aser” (dízimo), está relacionado com o verbo עשר “asar” (dizimar) e a primeira menção deste termo (ma’aser/dízimo) ocorre em Bereshit (Gênesis)14.20. Porém, sua legislação só irá ocorrer na Torah a partir de Vayikrá (Levítico) 27, passando também por Bamidbar (Números) 18 e D’varim (Deuteronômio) capítulos 12; 14 e26. Depois disso, a palavra ma’aser/dízimo aparece poucas vezes no Tanach (Bíblia hebraica chamada pelos cristãos de Velho Testamento). Nos textos pré-exílicos posteriores a Torah, a palavra ocorre apenas em Amós 4.4, embora haja uma menção de entrega de dízimos durante a reforma de Ezequias em Divrei hayamim beit ( 2 Crônicas) 31.5. Nos textos pós-exílicos ma’aser/dízimo é encontrado seis vezes no livro de Nechemiah (Neemias), duas vezes em Malachi (Malaquias). No livro de Yechezkel (Ezequiel) este substantivo é utilizado duas vezes para designar a décima parte de uma unidade de medida.
No livro Makabim alef (Primeiro Macabeus), temos a menção desta prática em três ocasiões: 1Mk. 3.49; 10.31 e 11.35.

O dízimo na antiguidade.

Ao contrário do que a grande maioria deve pensar o pagamento de dízimos não se originou com os hebreus e muito menos com a Bíblia! Antigas civilizações pagãs como fenícios e babilônios, dentre outros, já pagavam o dízimo. Tabletes de argila com escrita cuneiforme comprovam esta prática na mesopotâmia, sobre isso, podem-se verificar maiores detalhes nas obras: “The anciente Orient”, de W. Von Soden. Eerdmans 1994. Pg. 183-198; “Theology of the Old Testament”, de W. Eichrodt, SCM 1987. Vol. 1, pg. 141-177 e ainda, “Theological Wordbook of the Old Testament”, Moody press, 1980.  

A) O dízimo de Avraham (Abraão).

Ouvindo, pois, Abrão que o seu irmão estava preso, armou os seus criados, nascidos em sua casa, trezentos e dezoito, e os perseguiu até Dã.
E dividiu-se contra eles de noite, ele e os seus criados, e os feriu, e os perseguiu até Hobá, que fica à esquerda de Damasco.
E tornou a trazer todos os seus bens, e tornou a trazer também a Ló, seu irmão, e os seus bens, e também as mulheres, e o povo.
E o rei de Sodoma saiu-lhe ao encontro (depois que voltou de ferir a Quedorlaomer e aos reis que estavam com ele) até ao Vale de Savé, que é o vale do rei.
E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; e era este sacerdote do El Elion E abençoou-o, e disse: Bendito seja Abrão pelo El Elion, o Possuidor dos céus e da terra; E bendito seja o El Elion, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo. (Bereshit/Gênesis 14.14-20)

Considerando que Bereshit (Gênesis) 14, não seja uma interpolação tardia de uma narrativa composta a partir de tradições orais, como acredita a maioria dos eruditos bíblicos, o episódio em que Avraham (Abraão) paga o dízimo a Malkitsedek (Melquizedeque) é o primeiro texto bíblico revelando esta prática. No entanto, conforme dissemos anteriormente, a legislação do dízimo para os hebreus só foi regulamentada bem depois pela Torah, nos tempos de Moshê (Moisés). Portanto, o dízimo pago por Avraham seguia o antigo costume daquela região, onde aqueles que venciam as guerras tinham o direito aos despojos da mesma, e não a determinação bíblica para tal, até porque a forma de dízimo pago pelo patriarca não é prevista na regulamentação do dízimo dada para os hebreus.

B) O dízimo de Ya’akov (Jacó).

Outra menção de pagamento de dízimo na Bíblia no período dos patriarcas é o que consta em Bereshit (Gênesis) 28.20-22:

E Jacó fez um voto, dizendo: Se Elohim for comigo, e me guardar nesta viagem que faço, e me der pão para comer, e vestes para vestir; E eu em paz tornar à casa de meu pai, YHWH me será por Elohim; E esta pedra que tenho posto por coluna será casa de Elohim; e de tudo quanto me deres certamente te darei o dízimo.

Mais uma vez, o dízimo mencionado por um patriarca nada tem a ver com o que foi determinado para o povo, neste caso específico observamos o seguinte: Se o dízimo fosse uma prática comum de Ya’akov, ele não teria feito tal voto, pois qual o sentido de votar algo que já se faz regularmente?
A forma como Ya’akov fez o voto é o oposto da condição apresentada pelas igrejas, pois Ya’akov disse: “Se me abençoares lhe darei o dízimo de tudo”. Enquanto as igrejas dizem: “Dê o dízimo e serás abençoado.”

O que Ya’akov fez, foi um voto. Ele não estava respondendo a algo sistematizado e obrigatório; Portanto, esta passagem não serve como “prova” de biblicidade para cobrança de dízimos.

O Dízimo bíblico.

Conforme dito anteriormente, o dízimo como algo sistemático e obrigatório para o povo do Eterno só foi regulamentado à partir dos livros Vayikrá (Levítico), Bamidbar (Números) e D’varim (Deuteronômio), mas antes de tecer comentários sobre como e o que eram os dízimos, não podemos deixar de propor a seguinte reflexão:

Se o dízimo só foi regulamentado como obrigatório pela Torah, e se para os cristãos esta mesma Torah foi abolida, por que então eles cobram fidelidade a este mandamento por parte de seus membros?

É necessário um verdadeiro “contorcionismo hermenêutico” para justificarem esta prática, pois a incoerência é flagrante! Vamos aos textos para entendermos o que era o dízimo e como deveria ser entregue:

Também todas as dízimas do campo, da semente do campo, do fruto das árvores, são do Senhor; santas são ao Senhor.
Porém, se alguém das suas dízimas resgatar alguma coisa, acrescentará a sua quinta parte sobre ela.
No tocante a todas as dízimas do gado e do rebanho, tudo o que passar debaixo da vara, o dízimo será santo ao Senhor.
Não se investigará entre o bom e o mau, nem o trocará; mas, se de alguma maneira o trocar, tanto um como o outro será santo; não serão resgatados.
Estes são os mandamentos que o Senhor ordenou a Moisés, para os filhos de Israel, no monte Sinai.
(Vayikrá/Levítico 27.30-34)

Da saída do Egito até a conquista da Terra Prometida, os hebreus foram trabalhados no intuito de ser uma comunidade, uma nação separada, santa em relação às demais e assim, serem os representantes do Eterno no mundo. Para que este objetivo fosse alcançado, a Torah foi entregue no Sinai e ela foi e continua sendo o instrumento utilizado para talhar o caráter do povo.
Durante a peregrinação no deserto, algumas instruções não tinham como ser observadas devido a vida nômade que o povo levava, logo, os dízimos de cereais e dos frutos das árvores, por exemplo, não poderiam ser entregues já que o povo não possuía terras para o cultivo destes mantimentos. Vale lembrar que neste período os hebreus foram sustentados com Maná:

E comeram os filhos de Israel maná quarenta anos, até que entraram em terra habitada; comeram maná até que chegaram aos termos da terra de Canaã.
(Shemot/Êxodo 16.35)

Percebe-se então que durante a peregrinação no deserto os únicos dízimos que poderiam ser entregues eram os do gado e rebanhos, e por não estar especificado no texto de Vayikrá (Levítico) como estes deveriam ser utilizados naquele período, por inferência podemos dizer que os dízimos dos rebanhos seriam para a realização dos serviços sagrados que, mesmo vivendo de maneira nômade, os hebreus tinham a obrigação de oferecer sacrifícios e ofertas a YHWH.
A partir do momento que possuíram a Terra Prometida e começaram a cultivá-la, os hebreus deveriam entregar também os dízimos do produto da terra. Os dízimos então passaram a ter mais uma finalidade:

E eis que aos filhos de Levi tenho dado todos os dízimos em Israel por herança, pelo ministério que executam, o ministério da tenda da congregação.
E nunca mais os filhos de Israel se chegarão à tenda da congregação, para que não levem sobre si o pecado e morram.
Mas os levitas executarão o ministério da tenda da congregação, e eles levarão sobre si a sua iniqüidade; pelas vossas gerações estatuto perpétuo será; e no meio dos filhos de Israel nenhuma herança terão, porque os dízimos dos filhos de Israel, que oferecerem ao Senhor em oferta alçada, tenho dado por herança aos levitas; porquanto eu lhes disse: No meio dos filhos de Israel nenhuma herança terão. (Bamidbar/Números 18.21-24)

Os Levitas, a tribo que não recebeu terras, pois sua função era os serviços sagrados tanto no Mishkan (Tabernáculo) quanto posteriormente no Beit HaMikdash (Templo), passaram a receber os dízimos do povo como forma de sustento, e mesmo estes repassavam o dízimo dos dízimos para os sacerdotes (ver Bamidbar/Números 18.26-28).
No livro de D’varim (Deuteronômio), temos outra aplicação, vejamos:

Certamente darás os dízimos de todo o fruto da tua semente, que cada ano se recolher do campo. E, perante YHWH teu Elohim, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu grão, do teu mosto e do teu azeite, e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer a YHWH teu Elohim todos os dias. E quando o caminho te for tão comprido que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher YHWH teu Elohim para ali pôr o seu nome, quando YHWH teu Elohim te tiver abençoado;
Então vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher YHWH teu Elohim; e aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante YHWH teu Elohim, e alegra-te, tu e a tua casa;
Porém não desampararás o levita que está dentro das tuas portas; pois não tem parte nem herança contigo.
Ao fim de três anos tirarás todos os dízimos da tua colheita no mesmo ano, e os recolherás dentro das tuas portas;
Então virá o levita (pois nem parte nem herança tem contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão; para que YHWH teu Elohim te abençoe em toda a obra que as tuas mãos fizerem.
(D’varim/Deuteronômio 12.22-29)

O texto acima deixa claro que os produtos extraídos da terra deveriam atender os anseios espirituais dos israelitas além de promoverem justiça social, pois além de manterem os responsáveis pelos serviços sagrados, a cada três anos os dízimos eram destinados aos estrangeiros, órfãos e viúvas.
Enquanto o Templo esteve de pé e o sacerdócio levítico oficiava, esta legislação deveria ser respeitada e seguida, quando isso não ocorria, O Eterno levantava homens tementes que reconduziam o povo a esta prática como podemos constatar em: Divrei HaYamim beit (II Crônicas) 31.1-6; Nechemiah (Neemias) 10.28, 29, 37 e 38; Malachi (Malaquias) 2.1-9; 3.7-10).

Diante do exposto, fica evidente a relação entre o Dízimo e a agropecuária, sendo assim, surge à pergunta:
“E quem não fosse agricultor ou pecuarista, como deveria dizimar?”

A resposta é bem simples, mas antes, em virtude ao posicionamento cristão quanto ao dízimo, devemos dizer que tal resposta certamente causará algum incômodo a líderes cristãos que porventura lerem este estudo...
Como íamos dizendo, as profissões que não estavam ligadas a agropecuária estavam isentas de pagarem o dízimo. Artesãos, padeiros, carpinteiros, cozinheiros, guardas, pescadores, mestres de obra, ourives, caçadores, mercadores, músicos, alfaiates, coletores de impostos, ferreiros, etc., não tinham a obrigação, pois não há citação bíblica
de que os rendimentos do trabalho desses profissionais podiam ser cambiados ou compensados por ovelhas ou grãos a fim de se cumprir os procedimentos dos dízimos. Com isso em mente, mais uma coisa emerge do texto, é a seguinte: Dízimo nunca foi e nem é dinheiro! Não se pode alegar que isso se devia ao fato de não haver dinheiro naquela época, pois já nos tempos de Avraham (Abraão) já existia um sistema monetário (Ver Bereshit/Gênesis 23.15-16), por exemplo.
Quando Malachi exorta o povo sobre os dízimos devemos ressaltar que ele se referiu a “mantimentos” e não dinheiro:

“Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na Minha casa...”
 (Malachi/Malaquias 3.10)

Estes mantimentos eram armazenados nas câmaras que foram construídas sob ordem do Rei Ezequias para esta finalidade:

Então ordenou Ezequias que se preparassem câmaras na casa do Senhor, e as prepararam. Ali recolheram fielmente as ofertas, e os dízimos, e as coisas consagradas; e tinham cargo disto Conanias, o levita principal, e Simei, seu irmão, o segundo.
(Divrei HaYamim beit/2 Crônicas 31.11-12)

OBS.:
Observe que existe distinção entre Dízimos, ofertas e coisas consagradas!

Vale lembrar que, conforme ensina a Torah em D’varim/Deuteronômio 12, os dízimos deveriam ser comidos e caso não pudesse ser levado ao local destinado ao seu recolhimento (Yerushalayim/Jerusalém), dever-se-ia vender o dízimo e com o dinheiro obtido da venda, o ofertante iria então ao local escolhido e após comprar tudo aquilo que sua alma desejasse para banquetear-se com sua família na presença do Eterno!

O dízimo no “Novo testamento”.

No chamado Novo Testamento, a citação do dízimo (fora de textos do Tanach reeditados em seu conteúdo), só pode ser encontrada em dois livros, os evangelhos de Matitiyahu (Mateus) e Lucas e em nenhum deles se faz menção a dinheiro, mas em produtos agrícolas!

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e tendes omitido o que há de mais importante na lei, a saber, a justiça, a misericórdia e a fé; estas coisas, porém, devíeis fazer, sem omitir aquelas.
(Matitiyahu/Mateus 23.23)

Mas ai de vós, fariseus! Porque dais o dízimo da hortelã, e da arruda, e de toda hortaliça, e desprezais a justiça e o amor do Eterno. Ora, estas coisas importavam fazer, sem deixar aquelas.
 (Lucas 11.42)

Jejuo duas vezes na semana, e dou o dízimo de tudo quanto ganho.
 (Lucas 18.12)


Quando o dízimo se tornou dinheiro?

O dízimo como dinheiro origina-se do cristianismo primitivo que, diga se de passagem, já estava bem afastado de suas raízes hebraicas e consequentemente da Torah. O Didaquê (termo grego para doutrina; ensino; instrução;) conhecida como a “instrução dos doze apóstolos” cuja composição é situada entre a segunda metade do Século I e meados do Sec. II, embora seja consenso que NENHUM dos doze apóstolos tenha escrito tal obra apesar da menção a estes, preceituava que: “que as primícias do dinheiro, das roupas e de todas as suas posses deveriam ser dadas.” (13.7).
No Século VI mais precisamente no ano 585 d.C., O rei da Borgonha convocou um terceiro concílio em Mâcon onde os bispos da Borgonha e Nêustria promulgaram vinte cânones. Dentre os quais havia um que determinava a excomunhão daqueles que não pagassem os dízimos. Posteriormente, os soberanos carolíngios (dinastia de Carlos Magno) tornaram o dízimo eclesiástico como parte da lei secular. Confirmando-o com uma sanção civil, tornando obrigatório o pagamento do dízimo à igreja de Roma. Assim, a prática obrigatória do dízimo foi restabelecida por iniciativa da Igreja de Roma.

Concluindo...

Muito ainda poderia ser dito sobre o tema, pois muitos desdobramentos ocorreram ao longo dos séculos, mas acreditamos que este resumo pode indicar o “caminho das pedras” para um maior entendimento sobre o assunto.
Devemos esclarecer ainda que se alguém deseja contribuir para um trabalho religioso, entenda que isso é uma oferta, caridade ou seja lá qual o nome se queira dar, e esta oferta deve estar de acordo com aquilo que propôs no seu coração conforme ensinado por Sha’ul (Paulo):

Cada um contribua segundo propôs no seu coração; não com tristeza, ou por necessidade; porque O Eterno ama ao que dá com alegria.
(Curintayah beit/ 2 Coríntios 9.7)

Referências:

Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. Walter A. Elwell
Dicionário Internacional de teologia do Antigo Testamento. R. Laird Harris; Gleason L. Archer, Jr. Bruce K. Waltke. Além de diversos sites na internet

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Sefer D’varim (Livro Deuteronômio).

Por Yochanan ben Avraham.

Introdução.

Chegamos ao último livro da Torah, e para iniciarmos os estudos e comentários de seu conteúdo faremos uma breve apresentação deste livro que, sem exageros, pode ser considerado o mais importante da Torah! Esta afirmativa se deve ao sentido claro de suas palavras acerca de como deve ser o relacionamento com O Eterno.
A ratificação do monoteísmo e o caráter do Eterno em relação a Sua Palavra; a afirmação da essencialidade do amor como base da “religião” (Serviço ao Eterno) e nas relações humanas e a definição das condições para ser parte integrante do povo de Adonai, (Israel), fazem deste livro uma obra magistral de fundamental importância para aqueles que pretendem trilhar O Caminho para a Vida.

O título do Livro.

Em hebraico este livro chama-se “D’varim”, que significa “Palavras”. Na Septuaginta (LXX), a conhecida versão grega do Tanach (Chamado de Velho Testamento pelos cristãos) ele foi denominado como “Deuteronômio”, que significa “segunda Lei” ou “Repetição da Lei”. Porém, a denominação grega para o livro, acaba indiretamente induzindo o leitor a um erro, pois o conteúdo de D’varim não é necessariamente uma repetição do que já havia sido dito nos demais livros, veja o quadro abaixo:

                Livros
   Repetição em D’varim
    Omitido em D’varim
Bereshit (Gênesis)
Quase nada
Criação, Dilúvio, Yosef e seus irmãos.
Shemot  (Êxodo)
Poucos detalhes do Êxodo; a revelação do Sinai; o pecado do bezerro de ouro
Mishkan (santuário móvel/Tabernáculo)
Vayikrá (Levítico)
Quase nada
Quase todas as mitzvot (mandamentos)
Bamidbar (Números)
Os espias; a derrota de Sichon & Og
Quase todas as mitzvot (mandamentos)

Como demonstrado, o sefer D’varim não é uma mera repetição, além do mais, contém mandamentos que não foram mencionados em nenhuma outra parte da Torah.

O tema do livro.

D’varim começa a se destacar dos demais, quando percebemos ao longo de todo seu texto a unidade de estilo e linguagem. Em comparação com os outros quatro livros, onde as histórias e mandamentos são apresentados na terceira pessoa, o sefer D’varim é quase todo escrito em primeira pessoa. Esta particularidade indica que o livro é uma coletânea de discursos sob o tema: “obediência e manutenção da Torah”.
Entendemos então que D’varim é como se fosse o ponto de partida para a “Nação israelita”, pois sintetizava em seu conteúdo tudo o que definia e representava ser um israelita, ou seja, a omissão de vários aspectos importantes da história dos hebreus pode significar que todos já conheciam as origens e o chamado do povo, e que naquele momento se iniciava uma nova etapa, onde a identidade israelita estava sendo definida e santificada. É esta definição contida em D’varim que nos leva a compreender porque muitos o consideram como aquilo que salvou o povo na diáspora, já que seu valor é mais do que literário, é moral.
O que também nos salta aos olhos é o forte apelo para as relações humanas. De fato, a geração que estava recebendo aquelas palavras, não era mais a mesma, pois com exceção de Yehoshua e Kaleb, ninguém da geração anterior entraria na terra prometida. Foi uma geração que NÃO cresceu no cativeiro de faraó numa terra infestada de idolatria, mas sob a liderança de Moshe, conhecendo o poder e a vitória decorrentes da confiança em Adonai. Estas características indicam que o povo tinha um nível de consciência religiosa bem definida, porém, é possível que, no que diz respeito às relações sociais, muitas coisas precisariam ser “ajeitadas” e é com este “background” que se entende a instituição de diversas leis com a finalidade de organizar a sociedade israelita em relação ao seu cotidiano e também nas celebrações estabelecidas pela Torah, como vemos nos capítulos 14 e 16, por exemplo.
O crescimento do povo longe da idolatria do Egito e a separação dos povos cananeus, podem ter causado um “efeito colateral” nos filhos de Israel, a hipocrisia e a xenofobia. Contra estes males D’varim preveniu da seguinte forma:

“Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e não mais endureçais a vossa cerviz. Pois YHWH vosso Elohim é Elohei dos deuses, e o Senhor dos senhores, o El grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita recompensas;
Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Por isso amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.”

(D’varim/Deuteronômio 10.16-19)

A autoria do Livro.

As discussões entre críticos e acadêmicos sobre a autoria de D’varim, fornecem dados interessantes para análises, contudo, por questões de brevidade, não iremos abordar todas as questões, mas apenas um breve resumo daquilo que consideramos mais relevante para o momento.
Até época recente, alguns críticos afirmavam que D’varim havia sido escrito no tempo de Yoshiyahu (Josias) por volta do ano 621 a.C. isto se deve, provavelmente, por causa do idioma e estilo e também por um “evidente” parentesco com Yermiyahu (Jeremias) e o autor do Sefer Melachim (Livro de Reis) tanto pela forma quanto pela retórica. Contudo, a unidade de pensamento encontrada no livro e citações encontradas nele próprio (capítulo 31.9, 24-26), apontam para Moshe como o autor.
Uma provável solução para o impasse sobre a autoria poderia ser sugerida a partir do pensamento de que um texto original foi encontrado no período do reinado de Yoshiyahu (Josias), já que a reforma implantada por este após a descoberta do sacerdote Chilkiyahu (Hilkias) do livro da Lei perdido no Templo (ver Melachim beit / II Reis 22. 8-30), apresenta muitos pontos de contato com o sefer D’varim, mas recebeu acréscimos no decorrer do tempo. De fato, o último capítulo sobre a morte de Moshe é compreendida como um apêndice posterior, escrito talvez por Yehoshua (Josué), El’azar (Eleazar) ou mesmo Sh’muel (Samuel).
De qualquer forma, mesmo diante de todas as teorias e especulações sobre a autoria destes escritos, nossa opinião é de que Moshe foi e o grande responsável pela codificação e registro da Lei, e como iniciador religioso e primeiro legislador ele deve ser considerado o autor desta obra, mesmo que a mudança dos tempos e condições sociais do povo israelita exigisse algumas adaptações de sua forma original.
Corroborando com a autoria de Moshe, temos alguns relatos da B’rit Chadashah (Chamado de Novo testamento pelos cristãos):

Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio, e repudiá-la? Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim.
(Matitiyahu/Mateus 19.7-8)

Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Yeshua HaMashiach.
(Yochanan/João 1.17)

Porque, se vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele.
Mas, se não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?
(Yochanan/João 5.46-47)

Porque Moisés disse aos pais: YHWH vosso Elohim levantará de entre vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser.
(Ma’assei/Atos 3.22)

Ora, Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisas viverá por elas.
(Ruhomayah/Romanos 10.5)

Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi que trilha o grão. Porventura tem O Eterno cuidado dos bois?
(Curintayah alef/1 Coríntios 9.9)

Portanto, citando Mishlei (Provérbios) 22.28, entendemos que devemos manter a tradição da autoria mosaica dos textos não só de D’varim, mas de toda Torah:

“Não removas os antigos limites que teus pais fizeram”

Curiosidades do Sefer D’varim.

  • É o livro com maior número de questões de relacionamento humano do que qualquer outro livro da Bíblia.
  • É citado 356 vezes por escritores posteriores do Tanach e mais de 190 vezes pela Brit Chadashah.
  • Foi o livro mais citado por Rabi Yeshua.
  • Enfatiza o amor de YHWH por Israel 5 vezes.
  • Enfatiza a necessidade de o homem amar ao Eterno 12 vezes.

Concluindo...

Este pequeno artigo buscou trazer uma base para o início dos estudos do Sefer D’varim, como pode ser observado, não esgota todas as discussões sobre o mesmo, apenas inicia o assunto para que de “Shabat a Shabat”, construa-se o conhecimento necessário para prosseguirmos nossa jornada e, se alguém quiser utilizar o nome dado pela septuaginta, Deuteronômio, que se entenda que a repetição não é a da Lei, mas deve ser a da prática dos mandamentos contidos neste livro.

Referências:

“A Lei de Moisés” Torá – Editora e Livraria Sêfer LTDA, 2001
“Conheça Melhor o Antigo Testamento”. Stanley A. Ellisen- Ed. Vida
Tanach Study Center”. Menachem Leibtag - http://www.tanach.org/
“Dicionário Bíblico”. John L. Mackenzie – Edições Paulinas. 1984

Shabat Shalom!!!


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Sedrá para o Shabat de 28/09/13 (Bamidbar 36)

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

Neste shabat alcançamos o último capítulo do Sefer Bamidbar (Livro de Números), é o momento de dizermos uns aos outros: “chazk chazak venit chazek! (Força força que sejamos fotalecidos!). Ao completar mais este ciclo, fica a certeza que a palavra de Elohim não se envelhece, por isso, ao estudá-la, somos revigorados para continuarmos nossa jornada e ao meditar em seus princípios, impedimos que as trevas dominem nossos pensamentos.
É cultivando os princípios da Torah em nosso coração, que ações justas e benéficas fluirão naturalmente de cada um de nós, ações que podem transformar o mundo trazendo luz àqueles que estão a nossa volta.
Na sedrá de hoje, comentaremos sobre a manutenção da herança entre as tribos, situação que foi decidida após uma variante que ocorreu durante a peregrinação, a herança das filhas de Tselofchad.

Zelando pela herança.

O perek (capítulo) trinta e seis se inicia com uma espécie de protesto por parte dos “roshim” (cabeças/líderes) da tribo de Menashe, por causa da diminuição de sua herança por causa dos eventuais casamentos das filhas de Tselofchad com membros de outras tribos. Se olharmos sob uma perspectiva materialista, poderemos encarar o episódio como uma manifestação gananciosa e egoísta por parte destes homens. Porém, em nenhum momento do capítulo temos a mínima impressão de que tanto O Eterno quanto Moshe e os demais roshim das outras tribos, censurarem este “protesto”, muito pelo contrário! Vemos isto ser encarado como uma causa justa. Sendo assim, com o respaldo deste relato da Torah, extraímos a primeira lição para nós. Devemos zelar por aquilo que nos foi dado.
Os líderes de Menashe evocaram em seu discurso as palavras de Elohim:

E disseram: A meu senhor ordenou O Eterno dar a terra de herança por sorteio, aos filhos de Israel, e meu senhor foi ordenado pelo Eterno para dar a herança de Tselofchad, nosso irmão, às suas filhas. (Bamidbar/Números 36.2)

O posicionamento daqueles homens foi tão correto que a partir desta situação um decreto foi baixado em Israel:

Isto é o que ordenou O Eterno acerca das filhas de Tselofchad, dizendo: Com aquele que agradar aos seus olhos, casarão, contanto que se casem na família da tribo de seu pai; e não passará a herança dos filhos de Israel de tribo em tribo, pois os filhos de Israel hão de se vincular cada qual à herança da tribo de seus pais. E toda filha que receber uma herança das tribos dos filhos de Israel, com alguém da família da tribo de seu pai casará, a fim de que herdem os filhos de Israel, cada um, a herança de seus pais; e não passará a herança de uma tribo a outra tribo, pois os filhos de Israel  hão de se vincular cada qual à sua herança. (Bamidbar/Números 36.6-9)

Numa sociedade agrícola ainda em formação, esta era uma situação crucial para o estabelecimento de uma justiça agrária que certamente evitaria problemas sociais posteriores, mas atualmente, diante de todas as mudanças ocorridas ao longo dos séculos e a diversidade socioeconômica hoje vivida, talvez não fique claro aos cidadãos contemporâneos, os valores defendidos pelos líderes de Menashe. No entanto, se “espiritualizarmos” a situação, certamente tiramos grandes lições para o nosso viver.
A palavra utilizada no texto para descrever herança é נחלה (nachalah), relacionado com algo que pertence a alguém em virtude de um direito antigo. É interessante observarmos que esta palavra tem como sinônimo próximo a palavra מורשה (morashah), com isso em mente, vejamos o que diz D’varim/Deuteronômio 33.4:

 A Torah (instrução) que nos ordenou Moshe, Morashah (herança) é para a Kehilat (congregação) de Ya’akov.

Fazendo a conexão entre os textos mediante os termos “nachalah” e “morashah”, e aplicando o mesmo princípio, entendemos que devemos ter cuidado em nossas relações para não perdermos nossa maior herança. De fato, a Torah sempre demonstrou uma atenção especial a este aspecto, o cuidado com as relações com membros de outras culturas para não se perder a identidade:

Quando YHWH Eloheicha te houver introduzido na terra, à qual vais para a possuir, e tiver lançado fora muitas nações de diante de ti, os heteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os cananeus, e os perizeus, e os heveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderosas do que tu; E YHWH Eloheicha as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás piedade delas;
Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira de YHWH se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria.
(D’varim/Deuteronômio 7.1-4)

Aprendemos aqui que devemos lutar, protestar e reivindicar por nossa herança, quando esta está sob “ameaças”. Não podemos consentir passivamente que ela seja tirada de nós. Devemos estar atentos a nossas relações para não permitir que sejamos influenciados a deixar a Torah, mas manter nossas convicções através do estudo, meditação e  prática de seus valores eternos.

Um brinde a diversidade.

Outra lição que aprendemos neste último capítulo pode ser observada a partir da expressão: “a fim de que herdem os filhos de Israel, cada um, a herança de seus pais; e não passará a herança de uma tribo a outra tribo...”
Devemos lembrar que cada tribo tinha sua bandeira, seu símbolo e cada tribo era representada por uma pedra preciosa no peitoral do cohen gadol (sumo sacerdote). Tudo isso indica a singularidade de cada uma delas, esse detalhe aponta para algo muito precioso, mas que nem sempre nos damos conta, me refiro ao fato de sermos únicos. Cada pessoa nesse mundo nasceu com características próprias: inteligências, habilidades, aparências e etc. que nos tornam “inéditos”! Mas nos deixamos levar pelos estereótipos, pela uniformização imposta pela sociedade, na verdade, nem todos estão preparados para a globalização e devido a isso, ao discurso do capitalismo predominante, somos induzidos a um consumismo desenfreado, onde se começa a querer o que o outro tem, ser o que o outro é, pois se não tem e nem se é o que está estabelecido no “status quo”, o indivíduo é, em vias de regra, discriminado.

Cada tribo tinha uma característica, Israel é um corpo cuja cabeça é o Mashiach, quando se entende isso vemos que as diferenças existem para trazer complemento e não conflito. No primeiro século desta era, este conceito foi muito bem explicado:

Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos.
Se o pé disser: Porque não sou mão, não sou do corpo; não será por isso do corpo?
E se a orelha disser: Porque não sou olho não sou do corpo; não será por isso do corpo?
Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? Mas agora O Eterno colocou os membros no corpo, cada um deles como quis.
E, se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo?
Assim, pois, há muitos membros, mas um corpo.
E o olho não pode dizer à mão: Não tenho necessidade de ti; nem ainda a cabeça aos pés: Não tenho necessidade de vós.
Antes, os membros do corpo que parecem ser os mais fracos são necessários;
E os que reputamos serem menos honrosos no corpo, a esses honramos muito mais; e aos que em nós são menos decorosos damos muito mais honra.
Porque os que em nós são mais nobres não têm necessidade disso, mas O Eterno assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela;
Para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns dos outros.
De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele.
(Curintayah alef/1 Coríntios 12.14-26)

Neste texto, Sha’ul (Paulo) esta se referindo a Israel, tratando-o de forma análoga como corpo, muito provavelmente tendo em mente o livro de Oshea (Oseias), pois ao se referir a Israel como corpo do Mashiach, há uma evidente conexão com o que disse o profeta:

E os filhos de Judá e os filhos de Israel juntos se congregarão, e constituirão sobre si uma só cabeça, e subirão da terra; porque grande será o dia de Jizreel.
(Oshea/Oséias 1.11)

Isto fica mais claro, quando ele menciona membros “menos honrosos”, pois é desta forma que Efraim (Israel/10 tribos do norte são chamadas em Oshea) e combinando com o que diz a segunda epístola a Timóteo, a associação é inevitável:

Israel foi devorado; agora está entre os gentios como um vaso em que ninguém tem prazer. (Oshea/Oséias 8.8)

Ora, numa grande casa não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para desonra. (2 Timóteo 2.20)

As dez tribos se misturaram com outras nações e perderam sua herança (física e espiritual), por muitos séculos têm estado perdida, mas aos poucos seus membros têm sido despertados e estão retornando conforme a promessa do Eterno.

Conclusão.

Se atentarmos para o que diz o último dos “asseret ha dibrot (dez ditos):

Não cobiçaras a casa de teu próximo; não cobiçaras a mulher de teu próximo, seu servo, sua serva, seu boi, seu asno, e tudo que seja de teu próximo.
(Shemot/Êxodo 20.17)

Perceberemos que este mandamento se torna muito difícil de observar se considerarmos a perspectiva apresentada, mas se passarmos a ser mais gratos pelo que temos e somos, entendendo que cada um tem seu valor e sua porção nesta vida, certamente viveremos melhor, livres da opressão e stress impostos pelo ritmo da “vida” contemporânea.

Shabat Shalom!!!

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Paulo ou Marcião? Identificando o apóstata.

Por Yochanan ben Avraham

Introdução.

Todas as pessoas que foram despertadas para um retorno às veredas antigas que, diga-se de passagem, nada mais é do que a observância da Torah com o entendimento de que ela é O Caminho para a vida, sofreram (e ainda sofrem) “ataques” de pessoas, (muitas vezes bem próximas), por causa de suas convicções e “novas” práticas adotadas. Ofensas do tipo: “Isto é um retrocesso!”; “Assim você cai da graça!” Ou ainda, “Isso é loucura!” Foram e ainda são comuns na vida daqueles que partiram em busca de um “modus vivendis” mais próximo daquilo que se entende como bíblico.
Em vias de regra, os acusadores são em sua grande maioria, adeptos do cristianismo, seja este católico romano ou católico reformado (protestantes/evangélicos) e baseiam suas acusações nos ensinamentos de Paulo (cujo nome verdadeiro é Sha’ul), pois segundo eles, Paulo ensina por meio de suas epístolas que a graça substituiu a Lei e que agora devemos pautar nossas vidas no “Novo Testamento”, pois este substitui o “Velho Testamento”, a própria designação destas obras como “Novo” e “Velho” exprimem bem o objetivo desta proposta doutrinária.
A pergunta que fazemos é: Teria Paulo (Sha’ul) ensinado isto? Se você é um estudante tanto do “Velho” quanto do “Novo” Testamento, certamente já ouviu algo do tipo: “Sha’ul (Paulo) era contrário a Lei/Torah.” “Sha’ul (Paulo) é o fundador do cristianismo”
Mas será que estas afirmações são verdadeiras? Bem... Pode ser que sim, pode ser que não, depende do objetivo de quem argumenta, pois muitos séculos se passaram desde que esse controverso judeu do primeiro século deixou esta vida e muito já foi dito e escrito sobre ele, de modo que a verdade pode estar misturada demais com as lendas a seu respeito para se saber algo com clareza e chegarmos a uma conclusão. Contudo, podemos ter uma noção de seu pensamento e verificar se ele realmente pregou contra a Torah.

Quem Foi Paulo (Sha’ul)?

Existe uma grande diversidade de opiniões sobre ele, uns o consideram anátema, outros, pelo contrário, o tem como um emissário do Reino dos Céus. Por isso, considerando os interesses e as conveniências sempre presentes, tentaremos de forma imparcial, apresentar alguns dados históricos que podem nos ajudar a entendermos um pouco mais sobre Paulo (Sha’ul) e seu legado doutrinário. Obviamente este artigo não tem a pretensão de ser uma biografia, mas se propõe a convidar aos interessados a uma análise e possível revisão em suas opiniões, caso estas já estejam formadas e estabelecidas em suas mentes.
Nosso ponto de partida para conhecer o pensamento de Paulo (Sha’ul) é o Novo Testamento, pois independente do que pensam as pessoas, tal obra é um documento importante que, mesmo sofrendo muitas inserções que corromperam bastante seu conteúdo, não deixa de nos dar boas informações sobre a forma de como diversos grupos judaicos observavam a Torah.
Com isso em mente, vamos deixar que o próprio Paulo (Sha’ul) se apresente:

Eu (Paulo/Sha’ul):
Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a lei, fui fariseu; Segundo o zelo, perseguidor da igreja, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo (Mashiach/Messias). (Filipenses 3.4-7)

Quanto a mim (Paulo/Sha’ul), sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, e nesta cidade criado aos pés de Gamaliel, instruído conforme a verdade da lei de nossos pais, zelador de Elohim, como todos vós hoje sois. E persegui este caminho até a morte, prendendo, e pondo em prisões, tanto homens como mulheres, como também o sumo sacerdote me é testemunha, e todo o conselho dos anciãos. E, recebendo destes cartas para os irmãos, fui a Damasco, para trazer maniatados para Jerusalém aqueles que ali estivessem, a fim de que fossem castigados. Ora, aconteceu que, indo eu já de caminho, e chegando perto de Damasco, quase ao meio-dia, de repente me rodeou uma grande luz do céu. E caí por terra, e ouvi uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? (Atos 22.3-7)

Mas confesso-te isto que, conforme aquele caminho que chamam seita, assim sirvo ao Elohim de nossos pais, crendo tudo quanto está escrito na lei e nos profetas. Tendo esperança em Elohim, como estes mesmos também esperam, de que há de haver ressurreição de mortos, assim dos justos como dos injustos. (Atos 24.14-15)

Segundo as descrições acima, podemos resumir a identidade de Paulo (Sha’ul) da seguinte forma: Ele era um judeu descendente do Reino do Sul, mais especificamente da tribo de Biniamim (Benjamim), e falando em termos quantitativos, pertencente ao maior grupo judaico da época os “p’rushim” (Fariseus), termo que significa separados; afastados, interpretado como "aqueles que se separaram" do resto da população comum para se consagrar ao estudo da Torah e das suas tradições.  Este grupo tinha duas facções principais que são conhecidas historicamente como Beit Hillel, cuja interpretação da Torah enfatizava o ‘espírito da Torah’ e Beit Shamai, que por sua vez, enfatizava a ‘letra da torah’. Percebe-se, que Paulo gozava de certo status dentro do grupo, pois tinha autoridade delegada para prender aqueles que eram considerados pelos “p’rusim” (fariseus) como “minim” (hereges), heresia esta que consistia em reconhecer o Rabi Yeshua Ha Netsari (o Nazareno) como o Mashiach (Messias). Depois de algum tempo, após uma experiência pessoal na estrada de Damasco, se tornou adepto do mesmo seguimento a que perseguia, e conforme sua confissão posterior continuava CRENDO EM TUDO QUE ESTAVA NA TORAH E NOS PROFETAS, isso demonstra que os primeiros seguidores de Rabi Yeshua, eram praticantes da Lei (Torah) como afirmou Epifânio, (um judeu helenizado que viveu no Século III e se converteu ao cristianismo):

“Mas estes sectários… não se chamavam de cristãos – mas de ‘Nazarenos’… contudo, são simplesmente judeus completos. Eles não só usam o Novo Testamento como também o Antigo Testamento, como o fazem os judeus… Eles não possuem diferentes idéias, mas confessam tudo exatamente como a Torá descreve e na forma judaica – exceto, porém, por sua crença no Messias. Pois eles reconhecem tanto a ressurreição dos mortos quanto a criação divina de todas as coisas, e declaram que Elohim é Um, e que o Seu Filho é Yeshua o Messias. Eles são bem treinados no hebraico. Pois dentre eles a Torá inteira, os Nevi’im (Profetas) e… os Ketuvim (Escritos)… são lidos em hebraico, como certamente o são entre os judeus. Eles são diferentes dos judeus, e diferentes dos cristãos, apenas no seguinte: Eles discordam dos judeus porque chegaram à fé no Messias; mas como eles ainda estão na Torá... Eles não estão de acordo com os cristãos… eles não são nada mais do que judeus… Eles possuem as Boas Novas de acordo com Matitiyahu (Mateus) completamente em hebraico. Pois, está claro que eles ainda preservam-nas no alfabeto hebraico, tal qual foram escritas originalmente.” (Epifânio: Panarion 29)

Embora Paulo (Sha’ul) tenha “virado a casaca”, deixando de ser “P’rushim” (Fariseu) para se tornar um Netzarim (Nazareno) ele continuou zeloso da Lei (Torah), pois ambos os seguimentos criam na Torah como palavra do Senhor, contudo, tinham interpretações diferentes. Mais adiante falaremos um pouco destas diferenças.

O que os outros diziam de Paulo (Sha’ul)?

Se buscarmos ao longo do “Novo” testamento, tudo o que se dizia de Paulo (Sha’ul), certamente não terminaríamos este artigo tão cedo, por isso vamos ser pontuais, citando apenas algumas daquelas que são relativas à sua postura em relação a Torah. Primeiramente vejamos o que a segunda epístola de Pedro (Kefah) registrou:

E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada; Falando disto, como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição. (Kefah beit/(2 Pedro)3.15-16)

Neste pequeno texto, e feita uma advertência para que os fieis se apoiassem no fato de que a Salvação vem da longanimidade do Eterno, assim como dizia o irmão Paulo. Aqui está a chave para se compreender toda a complexidade das epístolas paulinas em relação a Lei (Torah), pois ele simplesmente ensinava que a nossa redenção não vinha pelos méritos pessoais por cumprirmos a Lei, mas pela graça, pela bondade e misericórdia do Eterno. Conforme ele explicitou aos efésios:

Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Elohim. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; Porque somos feitura sua, criados no Mashiach Yeshua para as boas obras, as quais O Eterno preparou para que andássemos nelas. (Efessayah/Efésios 2.8-10)


Em síntese Paulo (Sha’ul) disse: Não somos salvos POR cumprirmos a Torah. Somos salvos PARA cumprirmos a Torah, pois a obediência aos mandamentos do Eterno é o estilo de vida de um salvo.
Outro detalhe que Pedro (Kefah) aborda, se refere as distorções feitas às palavras de Paulo (Sha’ul), pessoas que não entendiam seus ensinamentos e presumiam algo que ele não disse e espalhavam pela comunidade judaica, criando uma imagem negativa e apóstata do sh’liach (emissário) como podemos constatar no livro dos Atos:

E no dia seguinte, Paulo entrou conosco em casa de Tiago, e todos os anciãos vieram ali. E, havendo-os saudado, contou-lhes por miúdo o que por seu ministério O Eterno fizera entre os gentios. E, ouvindo-o eles, glorificaram ao Senhor, e disseram-lhe: Bem vês, irmão, quantos milhares de judeus há que crêem, e todos são zeladores da lei. E já acerca de ti foram informados de que ensinas todos os judeus que estão entre os gentios a apartarem-se de Moisés, dizendo que não devem circuncidar seus filhos, nem andar segundo o costume da lei. (Ma’assei/Atos 21.18-21)

Como lemos, nota-se que os boatos se espalharam rápido demais e chegou até Yerushalayim (Jerusalém), mas vejamos em outras passagens o que Paulo realmente disse:

Sobre Moisés (Lei):

Pois bem podes saber que não há mais de doze dias que subi a Jerusalém a adorar; E não me acharam no templo falando com alguém, nem amotinando o povo nas sinagogas, nem na cidade. Nem tampouco podem provar as coisas de que agora me acusam. Mas confesso-te isto que, conforme aquele caminho que chamam seita, assim sirvo ao Elohim de nossos pais, crendo tudo quanto está escrito na lei e nos profetas. (Ma’assei/Atos 24.11-14)

Mas, alcançando socorro do Eterno, ainda até ao dia de hoje permaneço dando testemunho tanto a pequenos como a grandes, não dizendo nada mais do que o que os profetas e Moisés disseram que devia acontecer... (Ma’assei/Atos 26.22)

E aconteceu que, três dias depois, Paulo convocou os principais dos judeus, e, juntos eles, lhes disse: Homens irmãos, não havendo eu feito nada contra o povo, ou contra os ritos paternos, vim, contudo preso desde Jerusalém, entregue nas mãos dos romanos... (Ma’assei/Atos 28.17)

E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom. (Ruhomayah/Romanos 7.12)

Sobre a circuncisão:

Estai, pois, firmes na liberdade com que Mashiach nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão. Eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Mashiach de nada vos aproveitará. E de novo protesto a todo o homem, que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei. Separados estais de Mashiach, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porque em Yeshua Ha Mashiach nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé que opera pelo amor. Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade?Esta persuasão não vem daquele que vos chamou. (Galutyah/Gálatas 5.1-8)

A primeira vista, temos a impressão de que Paulo está falando contra a circuncisão, porém, o que ele está dizendo é que ninguém será “salvo” só porque está circuncidado, pois de nada vale circuncidar o prepúcio do seu órgão reprodutor se o coração não estiver circuncidado! Exatamente o que diz a Torah e os profetas:

Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e não mais endureçais a vossa cerviz. (D’varim/Deuteronômio 10.16)

Circuncidai-vos ao Senhor, e tirai os prepúcios do vosso coração, ó homens de Judá e habitantes de Jerusalém, para que o meu furor não venha a sair como fogo, e arda de modo que não haja quem o apague, por causa da malícia das vossas obras. (Yermiyahu/Jeremias 4.4)

O discurso de Paulo dava ênfase a interiorização da Torah, o que pode ser comparado ao conceito chamado “kavanah” que nos dá a idéia de “real intenção do coração”. Ele combatia a religião da aparência, do ritualismo vão, e isso ia de encontro a realidade de muitos grupos de então, que mantinham uma aparência externa de fé (fidelidade), mas totalmente desprovida de conteúdo. Tanto é assim que no mesmo capítulo ele afirma:

Confio de vós, no Senhor, que nenhuma outra coisa sentireis; mas aquele que vos inquieta, seja ele quem for, sofrerá a condenação. Eu, porém, irmãos, se prego ainda a circuncisão, por que sou, pois, perseguido? (Galutiyah/Gálatas 5.10-11)

Ele entendia que a Lei (Torah) era algo espiritual:

Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado (Ruhomayah/Romanos 7.14)

Agora pense um pouco: Se Paulo disse que não havia feito nada contra os ritos paternos (At. 28.17) e nos ritos paternos esta incluída a Brit Milá (circuncisão) como um estatuto perpétuo (Ver Bereshit/Genesis 17.10-14), se ele pregou contra a circuncisão, ele foi um grande mentiroso. Mas como Pedro advertiu, apenas os indoutos e inconstantes presumiam tamanha incoerência. Para entender esta questão, considere a seguinte fórmula:
“Todo aquele que têm o coração circuncidado, circunda o prepúcio; mas nem todo que circunda o prepúcio tem o coração circuncidado.” Era isso que ele estava tentando dizer!

* (Sugerimos a leitura de outro artigo nosso no link abaixo)

Entretanto, aqueles que conheciam a Paulo, lhe defendiam:

Que faremos, pois? Em todo o caso é necessário que a multidão se ajunte; porque terão ouvido que já és vindo. Faze, pois, isto que te dizemos: Temos quatro homens que fizeram voto. Toma estes contigo, e santifica-te com eles, e faze por eles os gastos para que rapem a cabeça, e todos ficarão sabendo que nada há daquilo de que foram informados acerca de ti, mas que também tu mesmo andas guardando a lei. (Ma’assei/Atos 21.22-24)

Marcião e seus modernos seguidores.

Mesmo após muitos séculos depois da morte de Paulo (Sha’ul) e também de seus acusadores, o pensamento de que a Torah foi abolida segundo os seus ensinos continua apesar destas alegações não poderem ser provadas, já que as respostas de Paulo contra estas denuncias estão registradas no Novo Testamento.
Como então esta idéia falaciosa continuou até os dias de hoje, levando milhares de pessoas ao entendimento equivocado das “epístolas paulinas” e das que lhe foram atribuídas? A manutenção deste pensamento e de todas as vertentes nele fundamentado se deve a um homem... Marcion (ou Marcião).
Marcião, natural de Sinope, província romana do Ponto (na atual Turquia), que segundo o escritor judeu Filo tinha muitos judeus habitando por todas as partes desta província, o que de fato percebe-se, pois no livro de Atos dos Apóstolos 2.9 diz que na celebração de Shavuot (Pentecostes) que é uma das três festas de peregrinação, haviam homens vindos desta região.
Segundo Hipólito (Séc. III), Marcião era filho de um bispo daquela cidade (Sinope). Tertuliano (Séc. II e III) o descreve como proprietário de barcos, realmente a região do Ponto era um centro produtor de madeiras para embarcações. Epifânio (Séc. IV) afirmou em sua obra (Panarion), que no início Marcião era um asceta, mas que ao seduzir uma virgem foi excomungado por seu pai e obrigado a deixar sua cidade natal, outros já afirmam que tal acusação não passa de uma “fofoca maliciosa”. Recentemente, Bart D. Ehrman sugeriu que esta “sedução de uma virgem” seja uma metáfora para a corrupção que Marcião causou nos ensinos de comunidade primitiva. Mas o que ele, Marcião, ensinou afinal? Abaixo, segue uma breve relação dos principais pontos da doutrina marcionita:

  • O “Deus” do Tanach (chamado de Velho Testamento) não seria o mesmo da Brit Chadashah (Chamado de Novo Testamento).
  • O Tanach deveria ser lido/entendido de modo absolutamente literal.
  • O Tanach era uma ordem abolida e obsoleta.
  • Ele se opunha a tudo que fosse originário do judaísmo.
  • Criou um verdadeiro repúdio ao judaísmo.
  • O cristianismo seria uma nova revelação e não teria nenhuma ligação com o judaísmo, pelo contrário o cristianismo surgiu para substituir o judísmo.
  • Cristo era o salvador enviado pelo Pai.
  • Paulo era o seu principal (e até mesmo único) apóstolo.
  • Criou os termos Velho Testamento  Novo Testamento.
  • Afirmava, contudo, que o Novo Testamento estava cheio de elementos judaizantes por isso desenvolveu o primeiro ‘canon’ que se tem conhecimento, composto de duas partes: 1ª “O Evangelho” (partes do evangelho de Lucas); 2ª 10 cartas do “Apostolo” (Paulo).
  • Dizia ter obrigação de enviar aos crentes gentios um relato completo do curso dos acontecimentos com o objetivo de evitar que estes ficassem cativos das fábulas judaicas e assim, por causa do engano, se afastarem da verdade.
Desde sua ida para Roma entre os anos 142-143 d.C., Marcião desenvolveu sua teologia e atraiu grande número de seguidores. Seu movimento rivalizou-se com o cristianismo crescendo paralelamente com ele, obrigando o mesmo a se organizar melhor e definir a base de suas crenças para poder dar uma resposta plausível aos cristãos que estavam expostos às doutrinas marcionitas. Desta forma, por ironia do destino, a idéia marcionita de se criar um ‘canon’ (régua de medida), foi adotada pelos cristãos.
É interessante pensar no que Paulo (Sha’ul) diria a Marcião, se eles se encontrassem. Marcião, que dizia ser Paulo o verdadeiro apóstolo e ser divulgador de seus escritos, certamente receberia um grande “puxão de orelhas” de seu “mestre”, pois contra o repúdio aos judeus e questionamentos a primazia judaica, reavivado pela doutrina marcionita, Paulo já havia escrito:

Qual é logo a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, em toda a maneira, porque, primeiramente, as palavras do Eterno lhe foram confiadas. Pois quê? Se alguns foram incrédulos, a sua incredulidade aniquilará a fidelidade do Eterno? (Ruhomayah/Romanos 3.1-3)

E se alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste enxertado em lugar deles, e feito participante da raiz e da seiva da oliveira, Não te glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti.
Dirás, pois: Os ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Está bem; pela sua incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé. Então não te ensoberbeças, mas teme. Porque, se O eterno não poupou os ramos naturais, teme que não te poupe a ti também. Considera, pois, a bondade e a severidade de Elohim: para com os que caíram, severidade; mas para contigo, benignidade, se permaneceres na sua benignidade; de outra maneira também tu serás cortado. E também eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é O Eterno para os tornar a enxertar. Porque, se tu foste cortado do natural zambujeiro e, contra a natureza, enxertado na boa oliveira, quanto mais esses, que são naturais serão enxertados na sua própria oliveira! (Ruhomayah/Romanos 11.17-24)

A História revela que muitos ensinos similares ao de Marcião, se levantaram ao longo dos séculos, entre os bogomilos da Bulgária no século X e entre os cátaros do Languedoque, no sul da França, no século XIII, são exemplos de que “foram-se os dedos (Marcião), mas ficaram os anéis (sua doutrina)”... Atualmente, no que diz respeito a validade da Torah, poderíamos citar diversas denominações cristãs que mantêm o pensamento marcionita.

Conclusão.

Infelizmente, a maioria esmagadora daqueles que afirmam que a Torah foi abolida e que Paulo (Sha’ul) ensinou sobre isso, desconhecem a história da “Fé” que professam. Por esta razão, são capazes apenas de reproduzirem discursos. Ou seja, repetem aquilo que ouvem há muito tempo sem nunca terem pesquisado as origens ou sequer se interessam pelas fontes ou raízes desta “Fé”. Na verdade, o que se vê hoje é o que se denomina “psitacismo” ou “efeito papagaio”, não é fruto de conhecimento construído, mas mera adoção de uma ideologia (pensamento pronto) que, como vimos existe há quase dois milênios.
Por causa da tendência exposta acima, a grande maioria, tanto de cristãos quanto de judeus, estão reverberando a doutrina de Marcião e impedindo que muitos percebam na prática que:

A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos. O temor do Senhor é limpo, e permanece eternamente; os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente.
(Tehilim/Salmos 19.7-9)

Fontes:
Enciclopédia Histórico-teológica da Igreja cristã Vol. II (Walter A. Elwell)
História Social do Protocristianismo. (Ekkehard W. Stegemann, Wolfgang Stegemann)
The Spreading Flame. (F. F. Bruce)
wikipedia.org



Shalom U’Brachot!!! (Paz e Bênçãos!!!)